Uma análise estatística comprova que, ante o poder dos lobbies e das elites, a democracia não passa de uma ficção jurídica
Qual o verdadeiro poder nas chamadas democracias modernas? Rios de tinta correm sobre o assunto desde o fim do século XVIII. Argumentos de senso comum, políticos e filosóficos foram intensamente debatidos, mas raramente se buscou testar as hipóteses com métodos quantitativos. À luz da campanha eleitoral dos pré-candidatos democratas e republicanos, merece atenção o estudo dos cientistas políticos Martin Gilens, de Princeton (New Jersey) e Benjamin Page, da Northwestern (Illinois), intitulado Testing Theories of American Politics: Elites, Interest Groups, and Average Citizens (Testando Teorias sobre a Política Estadunidense: Elites, grupos de interesse e cidadãos médios).
Analisou-se o destino de 1.779 propostas políticas de âmbito federal de 1981 a 2002 sobre as quais houve pesquisas de opinião discriminadas por estratos de renda e sobre as quais também se registraram as posições de lobbies importantes. Foram testadas quatro teorias predominantes entre os teóricos da ciência política: “Democracia eleitoral majoritária”, “dominação por elite econômica”, “pluralismo majoritário” e “pluralismo enviesado”.
“Democracia eleitoral majoritária” é a visão tradicional. Foi teorizada pelo francêsAlexis de Tocqueville na era da democracia jacksoniana, o período de 1828 a 1854, no qual o sufrágio foi estendido a quase todos os homens livres e um populismo liberal promovia o homem branco comum em contraste com a precedente meritocracia jeffersoniana dos “pais fundadores” capacitados para dirigir a construção e modernização da nação. Muitos teóricos sérios ainda a defendem. Supõe-se que o mecanismo de recompensa e punição representado pelo voto basta para fazer os políticos atenderem às reais necessidades e valores de seus eleitores. A seu favor pode-se argumentar que as políticas federais dos EUA são consistentes com as preferências da maioria em dois terços das vezes e que as mudanças e variações regionais de políticas têm uma correlação com as variações históricas e geográficas da opinião pública.
“Dominação por elite econômica” é a teoria oposta de que os EUA são uma oligarquia civil na qual as principais decisões políticas são ditadas pelo consenso de uma classe dominante, cuja exata definição e dimensão são discutíveis, mas está relacionada à propriedade ou gestão efetiva de recursos decisivos, principalmente econômicos. A Elite do Poder, livro de 1956 do sociólogo Charles Wright Mills sobre a hegemonia das elites econômicas, militares e políticas é a expressão mais conhecida desse ponto de vista.
“Pluralismo majoritário” é uma interpretação mais matizada e complexa da democracia, formulada em um ensaio de 1787 por James Madison, presidente dos EUA de 1809 a 1817. Reconhece a inevitabilidade e importância da luta entre facções, cujo resultado nem sempre coincide com o interesse da maioria ou do “homem comum”, mas cuja resultante tenderia a derrotar medidas “tirânicas” e forçaria políticos a prestar atenção em todos os grupos capazes de se articular para defender interesses prejudicados. Se não há o governo do povo, há uma poliarquia ou pluralismo capaz de prevenir o pior.
O “Pluralismo enviesado” reconhece igualmente a importância da luta entre facções, mas aponta que nesta tendem a vencer aquelas com maior poder econômico, principalmente os lobbies empresariais e de classe. Nesta categoria pode ser incluída a maioria das análises marxistas e aquelas de pensadores como Elmer Eric Schattschneider (O Povo Semissoberano, 1960), Theodore Lowi (O Fim do Liberalismo, 1969) e de teóricos inspirados no filósofo polonês Karl Polanyi. Nesta perspectiva, a política é determinada principalmente pela disputa de facções organizadas da elite. Em certos casos, grupos organizados populares exercem alguma influência, mas nos EUA o enfraquecimento do movimento sindical desde os anos 80 os tornou ainda menos relevantes.
Para testar a pertinência dessas hipóteses, comparou-se o desenlace das 1.779 propostas políticas com a posição do “cidadão médio”, representado pelas preferências dos pesquisados de renda mediana, no meio exato da escala (51 mil dólares, em 2012, ano de referência), os da “elite”, aproximados pelos 10% de maior renda (146 mil dólares ou mais) e o dos “grupos organizados”, identificados como aqueles que aparecem repetidamente na lista “Power 25” da revista Fortune ou respondem pelas dez maiores despesas com lobbies.
O Congresso e o governo respondem apenas às elites e aos lobbies. (Saul Loeb/ AFP)
A aproximação para a “elite” é imperfeita, porque a rigor esta seria um grupo muito menor, indetectável nas pesquisas, e para “grupos organizados” também, porque apenas uma pequena fração dos lobbies mais visíveis é capturada pela análise. Em ambos os casos, isso significa que a influência real desses dois fatores pode ser maior do que as estatísticas conseguem indicar.
As decisões efetivas do governo federal têm uma correlação de 64% com as preferências do “cidadão médio”, de 81% com as da “elite” e de 59% com as dos grupos de interesse. Mas, quando se tenta uma correlação múltipla, o resultado é 3% para o “cidadão médio”, 76% para a “elite” e 56% para os grupos de interesse. Quando se separam esses últimos em grupos “de massa” e “empresariais”, os primeiros têm correlação de 24% e os segundos, de 43%. Isso significa que a influência independente do cidadão comum é praticamente nula. Se é contra ou a favor, isso não faz diferença. Quando as suas preferências parecem atendidas, é porque concordam com as da elite ou de grupos organizados, principalmente os empresariais.
A correlação entre as preferências do cidadão mediano e aquelas do conjunto dos grupos de interesse é praticamente nula. Entre esses, os únicos cujas posições coincidem com as do eleitor comum são os sindicatos e a AARP (associação dos aposentados). Outras associações, mesmo se apresentadas como “de massa”, não a representam, mas se se anulam umas às outras (“pró-vida” e “pró-escolha”, em relação ao aborto) ou são contrárias à maioria, como a associação dos proprietários de armas. No caso das associações empresariais, mais numerosas e influentes, a correlação com a vontade do cidadão médio é negativa (-10%).
Os testes rejeitam, portanto, tanto a tese da “democracia majoritária”, pois o cidadão mediano não tem influência independente, quanto aquela do “pluralismo majoritário”, pois o conjunto das organizações não representa a maioria. Mantêm-se plausíveis as outras duas teses ou uma combinação de ambas, o que caracteriza os EUA como uma oligarquia de fato.
Por que os interesses do cidadão médio parecem ser atendidos na maioria dos casos? Entram em jogo as três faces da política. A primeira é a capacidade dos atores de influenciar os resultados das disputas. A segunda é a de determinar a pauta do debate. A terceira é a capacidade de moldar as preferências do público. É notório que lobbies dedicam grande parte do seu esforço a esse último aspecto, mas a estatística não basta para demonstrar isso.
É difícil reproduzir essa análise em outros países. No Brasil, por exemplo, são raras as pesquisas de opinião sérias sobre questões de política pública e poucos os lobbies explícitos e visíveis. Mas a própria falta de transparência é sinal de que a democracia não está em melhor forma. Também é notório que as decisões da União Europeia têm pouca ou nenhuma correlação com as preferências das maiorias. Mesmo quando as liberdades e garantias proporcionadas por regimes ditos democráticos não são de se desprezar, a democracia propriamente dita continua a ser uma ficção jurídica. Na melhor das hipóteses, uma meta.
*Publicado originalmente na edição 879 de Carta Capital, com o título "Quem manda?"
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