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quarta-feira, 27 de maio de 2015

O Brasil sob narração religiosa

Muitas pessoas estão convencidas de que as elites brasileiras se reuniram e tomaram uma decisão: manter o povo ignorante. Bem, duas hipóteses: ou isso é verdadeiro, ou isso é falso. Se o povo é mesmo ignorante, então sua participação na política fará com que se estenda a ruindade da nossa vida pública.
Se a hipótese da conspiração das elites é falsa, o povo, então, não obstante suas poucas letras, sabe o que faz. A afirmação de que o povo sabe o que faz circula tanto quanto a que diz que o povo é ignorante. Talvez, pois, estejamos diante de uma terceira hipótese: o povo, não obstante a sua ignorância, sabe o que faz.
A mim me parece que uma coisa é certa: a primeira e mais simples das coisas que o ignorante ignora é a sua ignorância; a segunda coisa que o ignorante ignora – e essa já é mais complicada – é que lhe foi introjetado um sistema simplificador da complexidade do mundo. Para o ignorante, as coisas são óbvias.
Como para o ignorante tudo é muito simples, ele recusa o complexo como se o complexo fosse complicado; aliás, ele está convencido de que complexo é sinônimo de complicado. O ignorante diverte-se com a música simplesinha, com literatura de conteúdos mágicos, com programas apelativos de televisão.
Bem, voltando à possível manipulação das elites: como se controla pensamento? Sim, com o que se evita que se aprenda. Mas, também sim, como o que se faz aprender. Controla-se pensamento com a informação abstraída do aprendizado e com a informação levada ao aprendiz.
A questão é perceber isso. Por exemplo: a União Democrática Nacional, As Forças Armadas Brasileiras, a igreja católica e um significativo grupo de empresários brasileiros, com o devido apoio da CIA e com suporte militar norte-americano (que não foi usado) instalaram a Ditadura de 1964.
Sabe-se dos seus danos evidentes: censura aos meios de comunicação, assassinato de adversários, torturas de “inimigos internos”, supressão das franquias democráticas. Mas, e o que foi “plantado” na cabeça dos brasileiros pelos ditadores? E o não lido, visto, escutado? Como saber o que nos sonegaram de conhecer?
Até hoje há quem compreenda a Ditadura de 64 a partir da versão dos ditadores, isso não obstante tratar-se de um episódio recente e sua narrativa estar exposta a amplo contraditório. Agora, se refletirmos sobre o modo de pensar que vem lá da civilização na qual o Brasil está inserido? Dá pra escapar disso?
Uma situação sem qualquer alternativa é acachapante. A herança cultural de normas sociais, valores morais, crenças religiosas, manifestações artísticas, literatura, legislação é acachapante. Esse legado determina ao povo uma única interpretação possível da História, do mundo, da vida mesmo.
A partir do Século IV esse espólio foi apropriado por um imperador romano chamado Constantino. Esse sujeito era dono do mundo. Ele fez-se cristão. Ele submeteu o mundo ao cristianismo. Esse domínio perdurou até o fim do século XVIII. Foram 1500 anos de sistemática eliminação física de quem pensasse em divergência.
O Renascimento abriu algumas frestas. O Iluminismo trouxe luz a essas trevas. A Revolução Francesa e Napoleão Bonaparte instalaram a possibilidade científica. Esses avanços alcançaram mal a Península Ibérica. Portugal e Espanha continuaram a pensar conforme a narrativa religiosa das coisas.
É tarde, ligo a televisão, alcanço 40 canais. Afora os públicos, catei três que não vendiam religião. Os semitas, os judeus, os cristãos: Constantino. Daí até nossas tias, é fácil de entender. Mas o que acontecerá com o pensamento laico que os positivistas que implantaram a República tentaram nos deixar?
O Congresso Nacional agasalha cultos. A presidenta da Nação cede à bancada dos “irmãos” por apoio ao seu sôfrego governo. As escolas primárias oferecem aulas de Bíblia. Ao Brasil se sonega ciência (entre 65 países, 59ª posição). Os brasileiros aprendem uma interpretação religiosa das coisas, logo, vão pensar religião.
Por Léo Rosa

sexta-feira, 1 de maio de 2015

O menino e o Mocassim

Andava desconjuntado, meio aflito, meio envergonhado, um menino curioso e educado que jogava futebol sozinho, com aqueles sapatos mocassim. Sapatos estes que odiava por ao pé, chutava a bola pra La e pra ca ate perde-los ao ar. Colocava-os apressado, e o futebol não podia parar. Tratava com pouco respeito aquele artefato de couro, sem entender o que representava para seu pai, este que via o significado da humildade, sem perder o requinte das pessoas cultas.
Sonhava em seu mundo imaginário, sem fronteiras, onde tudo podia. Queria ser grande, fazer coisas nobres, e dar a seu pai o que orgulhar. Apesar de não saber o como fazê-lo, não perdia a esperança de menino, acreditava em algo justo e maior, mesmo sem saber qual era seu destino.
Com o passar dos anos, seu velho mocassim ficou ali jogado, como o antigo garotinho do futebol, que agora era adolescente, e não mais queria saber daquele velho e imundo sapato de seu pai. Queria coisas novas, tênis de skate e bota de couro. Queria estar na moda e fazer parte de um grupo social como todos. E não sabia o menino, que sua vida estava destinada ao mocassim, que aquele velho sapato um dia representaria orgulho e sabedoria.
O tempo passa, o menino já crescido, encontra seu destino meio aos tribunais, estudando e aprendendo, vendo gente fina e elegante e via tantos sapatos mocassim quantos podia contar. O que era aquilo, um clichê social? Não, era um perfil, perfil de gente grande que já estava impregnado em sua alma, sei lá devia ser coisa de seu pai. Contudo, já sabia como se portar, um menino adequado para aquele lugar.
Percebera que já não estava mais sozinho, que tudo é questão de se encontrar. Agora podia ser diferente, grande como queria, sem fronteiras como imaginava, ajudar pessoas com seu conhecimento e senso ético, e viver daquilo que tanto gostava. Ser grande não era tão difícil assim, era só questão de olhar aquele velho mocassim como olhava seu velho pai.