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sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

“Je suis Charlie”

Atentado contra jornalistas demonstra fragilidade da democracia e levanta várias questões

Publicado por Veruska Sayonara 
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O atentado terrorista contra uma revista de humor em Paris, a Charlie Hebdo, levanta uma bandeira universal a favor da liberdade de expressão, além de encontrar um inimigo público comum para a liberdade de imprensa – ou dois inimigos: o terrorismo e o fanatismo religioso. Comumente, expressam-se de maneira uniforme, sendo quase indissociáveis.
Je suis Charlie”, é o slogan pós-moderno correspondente às palavras de ordem da Revolução Francesa: “liberte, égalité, fraternité”. O ataque matou 12 pessoas e motivou a edição extraordinária de número 88 do Boletim Eletrônico da Federação Nacional dos Jornalistas Brasileiros (FENAJ), que condena e lamenta o ocorrido. Na verdade, inúmeras autoridades estatais e representantes de organizações defensoras dos direitos humanos emitiram declarações, já que o ato materializa uma comoção generalizada e representa outros mártires menos ilustres, como o repórter Sean Hoare. Suspeita-se que sua morte tenha ligação com sua profissão, embora a hipótese tenha sido descartada pela polícia. Sem falar dos jornalistas mortos pelo Estado Islâmico...
Mas o que tem sido chamado de “11 de setembro da imprensa” apenas demonstra de maneira brutal a violência contra o jornalismo e os jornalistas, em suas várias formas de expressão. E diferentemente de outras profissões de risco, como policiais, agentes de saúde, pilotos, políticos (!), a estes profissionais da liberdade não é outorgada prerrogativa alguma, exceto a da fantasia glamorosa do destemor e audácia. Interessante perceber que a faceta à paisana de alguns heróis das histórias em quadrinhos (HQ’s) seja a de jornalista: Super-Homem é o repórter Clark Kent; o Homem Aranha é o fotógrafo Peter Parker. Um arquétipo do homem normal que incorpora o “Complexo de Clark Kent” e todas as desvantagens do herói...

Proteção dos jornalistas x "democracia de riscos"

A profissão de jornalismo implica algumas premissas, como a ligação do jornalista com a democracia. Claro que o jornalismo depende de liberdade e de outras condições, reportando-se a um público virtual – a sociedade civil. Estabelece-se, então, a comparação do jornalista com o homem público, político, mandatário da confiança popular e, até certo ponto, representante dessa opinião pública.
Outra premissa está no constitucionalismo mundial dos direitos humanos. É dizer: além das constituições nacionais, também pactos e declarações internacionais preveem a liberdade de expressão, de comunicação e de opinião. No tecido dessas liberdades, estaria a liberdade de informação jornalística (Opinião Consultiva OC-5/85, Corte Interamericana de Direitos Humanos).
No caso do Brasil, que é membro da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA), isso significa dizer que temos, pelo menos, três instâncias (não superpostas hierarquicamente, no caso da ONU e da OEA) de proteção ao direito fundamental à informação jornalística. Tais instâncias compreendem o âmbito nacional, através da Constituição Federal de 1988; o âmbito internacional regional, através da Convenção Americana de Direitos Humanos (o Pacto de San José da Costa Rica no sistema interamericano, OEA); e o âmbito internacional global, através da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP, sistema global da ONU).
Como mecanismos de regulação da profissão e consequente proteção do jornalista, poderíamos elencar, com participação estatal, a regulamentação governamental das liberdades de comunicação e expressão, a proteção dos direitos e da reputação das pessoas, a proteção da segurança nacional, da ordem pública e da salubridade ou moral públicas, bem como promoção de maior exatidão da informação.
Quanto aos mecanismos que não contam com intervenção estatal: códigos de ética; capacitação; conselhos de imprensa (associações formadas por membros dos meios de comunicação e do público); e críticas dos meios de comunicação (como observatórios e ombudsman), lembrando a noção de Meios para Assegurar a Responsabilidade Social dos Media (MARS, Bertrand).
Intrigante é observar que inexistem garantias ao agente profissional do jornalismo – o jornalista. Apenas debate-se do ponto de vista estrutural externo, não se pensando a responsabilidade do próprio jornalista, posto na condição de “demagogo”, espécie de classe de “párias”, sem classificação social precisa (Weber). Mesmo essa responsabilidade terá que ser compreendida estruturalmente, sim, mas a partir das possibilidades reais.
Então, quais as possibilidades reais de um compromisso ético dos jornalistas, sem a participação do Estado? As experiências com os Meios para Assegurar a Responsabilidade Social dos Media mostram a impotência da autorregulação da mídia sem a participação do Estado (Camponez). Os mecanismos deontológicos frustram-se, perante a lógica mercadológica, expondo a tensão entre a filosofia do serviço público e a teoria liberal clássica da imprensa (Esteves).
Assim, diante das responsabilidades políticas do jornalista, enquanto titulares de um direito/ dever de informar, quais são as suas garantias? Onde se alicerça sua liberdade interna de seguir os preceitos éticos da profissão? Qual o elemento de identificação profissional, e quais as suas prerrogativas? Em que consiste o direito de proteção da fonte? Qual a proteção do jornalista contra o assédio moral? Enfim, se a atividade de mediação jornalística persiste, em nossos dias, e se atende a um direito humano/fundamental de informação factual, diária, de orientação social; se o jornalista é um agente político, que executa uma função pública importante, que direitos lhe são assegurados para cumprir o encargo, mandato, responsabilidade?
Sem trocadilhos infames com as terríveis perdas humanas, “a vida do jornalista, entretanto, está entregue, sob todos os pontos de vista, ao puro azar e em condições que o põem à prova de maneira quem não encontra paralelo em nenhuma outra profissão” (Weber). Assim, em um momento em que a democracia aparece tensionada ao máximo, sendo as regras do jogo duramente provadas; o jornalismo, seu irmão gemelar, também é açodado sob todos os pontos de vista de uma “sociedade de riscos”. De fato, “nous sommes Charlie”...

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