Barry Einchengreen: “O governo americano não tem sido o guardião confiável de uma moeda internacional”
Moeda dominante há mais de meio século, o dólar enfrenta pressões crescentes que devem abrir espaço a unidades monetárias rivais, inclusive as de potências emergentes periféricas, como o Brasil. Esse é o cenário contemplado por Barry Eichengreen, professor de Economia da Universidade de Berkeley, na Califórnia, em Privilégio Exorbitante, seu livro mais recente.
A supremacia da moeda americana é incontestável. Usado em 85% das transações comerciais, o dólar responde por quase metade do estoque global de títulos de dívida e por 60% das reservas mantidas pelos bancos centrais. Tal domínio é herança de um passado de hegemonia econômica que se cristalizou depois da Segunda Guerra Mundial e se estendeu pelas décadas seguintes.
Foi nesse período que o poder do dólar deu aos Estados Unidos um “privilégio exorbitante” – expressão usada nos anos 60 por Giscard d’Estaing, então ministro das Finanças do presidente francês De Gaulle, e que Eichengreen tomou emprestada para título do livro.
Em que consiste o privilégio? A vantagem mais óbvia está relacionada ao fato de os Estados Unidos se darem ao luxo de pagar juros baixos por seus títulos públicos, que são atraentes ao capital internacional em busca de segurança. Assim, os americanos podem manter déficits externos que financiam seu crescimento. “É nisso que consiste o privilégio exorbitante”, afirma Eichengreen, um colaborador do “Financial Times” e do “Wall Street Journal” que escreve de forma cristalina, sem informações desnecessárias ao argumento.
O status especial do dólar, porém, vem sendo colocado em xeque. “O governo americano não tem sido o guardião confiável de uma moeda internacional”, avalia o autor. Para ele, o perigo é o crescimento descontrolado dos déficits orçamentários. Eichengreen identifica uma deterioração fiscal no país, decorrente de cortes tributários no início dos anos 2000 e de aumentos de despesas com saúde pública e guerras. O resultado é que a dívida do governo, equivalente a 40% do PIB antes da crise de 2008, deve atingir 75% em 2015, e isso sem contar as despesas crescentes com seguridade por conta do início da aposentadoria dos “baby boomers”, a geração nascida na explosão demográfica após a Segunda Guerra.
Quando essa situação estiver configurada, os investidores “compreenderão que as alternativas dos Estados Unidos, em última análise, se resumem a medidas para corroer o valor real da dívida, presumivelmente mediante inflação”. A nova realidade chegaria de maneira abrupta. “Investidores até então confiantes acordarão uma manhã e concluirão que a situação é irreversível. Correrão para a saída. As taxas de juros nos Estados Unidos dispararão. O dólar cairá. Os Estados Unidos sofrerão o tipo de crise que a Europa experimentou em 2010, mas ampliada.”
Eichengreen não acredita que esses eventos acontecerão amanhã. “Mas a experiência da Europa nos faz lembrar que provavelmente temos menos tempo do que supomos para tomar as medidas necessárias para evitá-los”, diz, em referência à correção da política orçamentária.
A ameaça ao dólar, portanto, viria de dentro, e não de fora dos Estados Unidos. A China, por exemplo, não teria interesse em desbancar o dólar. A razão é simples: dois terços das reservas chinesas, nada menos do que US$ 2,5 trilhões, estão em ativos denominados em dólar. Com isso, o país teria o poder de derrubar o dólar a qualquer momento. Bastaria se desfazer da moeda americana. Se não cogita fazer isso, é porque perderia tanto quanto os Estados Unidos com a desvalorização de suas próprias reservas.
Os chineses têm, sim, a veleidade de serem protagonistas do mercado financeiro internacional nos próximos anos. Mas isso não significa, argumenta Eichengreen, que o yuan se candidatasse a substituto do dólar como moeda internacional. Para isso, os chineses teriam que liberar o acesso de investidores estrangeiros a seus mercados e adotar um sistema cambial flexível, garantindo o fluxo de capital e a farta liquidez que o mercado espera de uma moeda internacional. Essa abertura, no entanto, implicaria mudanças num modelo de crescimento que vem dando resultado.
O autor recomenda, de qualquer maneira, que se preste atenção ao yuan. Se não como moeda de reserva dominante, pelo menos como moeda de reserva regional. Esse, aliás, é um dos pontos centrais do livro. Eichengreen considera uma falácia a crença de que há espaço para apenas uma moeda internacional. Há que se levar em conta, além do yuan, o euro e os direitos especiais de saque (DES) do FMI. A exemplo do dólar, essas moedas apresentam problemas. Se o yuan tem Estado demais, o euro tem Estado de menos, enquanto o SDR “é dinheiro de brinquedo”.
Num mundo unipolar, tais moedas não teriam maiores chances de se tornar referência internacional. O mundo, no entanto, lembra Eichengreen, é cada vez mais multipolar, sobretudo depois da crise de três anos atrás, “que salientou a fragilidade financeira dos Estados Unidos”. Hoje, faz mais sentido a coexistência de moedas relevantes do que o predomínio do dinheiro de um país que, se ainda é “o primeiro entre iguais”, deixou de ser hegemônico.
É nessa brecha que o autor vê um papel a ser desempenhado pelo real. O Brasil entra na equação, junto com a Índia, pelas condições demográficas favoráveis, quesito que elimina outros candidatos, como Rússia e Japão. O tamanho do país tem a ver com o potencial de liquidez dos mercados financeiros. “Assumindo a convergência crescente dos padrões de vida, a população será fator-chave na determinação do porte da economia.”
Mas, adverte Eichengreen, apesar da perspectiva positiva, o governo brasileiro teria que eliminar as restrições à participação estrangeira no mercado financeiro para que o real, como diz, despontasse no horizonte.
Fonte: Oscar Pilagallo: jornalista e autor de “A Aventura do Dinheiro”.
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