Tela No Names, de Alice Lok Cahana
De pé ao meu lado o homem chorou. Logo antes da entrada da Capela Sistina, ainda na galeria de arte contemporânea, vi a emoção lhe apertar a garganta e abaixei a cabeça quando ele enxugou os olhos diante de “No Names”, tela de Alice Lok Cahana. Tela coberta de números, com exceção dos trilhos da ferrovia. Números dados aos judeus cujos nomes foram roubados em Auschwitz, onde ela desembarcou aos 15 anos de idade.
Jacques Austerlitz – o protagonista do livro Austerlitz, de W.G. Sebald (tradução de José Marcos Macedo, Companhia das Letras, 2008) – também viajou de trem para seu destino. Aos cinco anos de idade ele embarcou num Kindertransport, deixando Praga para ir à Inglaterra, onde seria adotado por um pastor calvinista e sua mulher.
Não só os comboios são comuns às vidas de Alice Lok Cahana e de Austerlitz. Ela perdeu seu nome aos 15 anos. Com a mesma idade Austerlitz aprendeu o seu.
Comboios, linhas férreas e estações. Na estação de Antuérpia, Jacques Austerlitz encontra o narrador, que abre o livro com as palavras: “Na segunda metade dos anos 60, viajei com frequência da Inglaterra à Bélgica, em parte por motivo de estudos, em parte por outras razões que a mim mesmo não ficaram inteiramente claras”. O narrador é um alemão exilado na Inglaterra, como o próprio W.G. Sebald, que se equilibra entre a pura invenção e a realidade enquanto passeia pela biografia, pelo ensaio e pelo romance.
Numerosas fotografias em preto e branco interrompem a leitura de um texto de quase 300 páginas e raríssimos parágrafos. Algumas delas são intrigantes e magnéticas, como a foto de Austerlitz aos cinco anos num disfarce suntuoso. A justificativa para as dezenas de fotografias que interrompem o texto advêm da ideia de que elas são uma espécie de ligação entre o passado e o presente. Mais do que isso, elas desafiam a noção de realidade do leitor, porque também elas são parte da ficção. Embora apareçam lado a lado com fotografias de fortificações, edifícios e lugares que existem de fato, o leitor sabe que Austerlitz é personagem fictícia e, portanto, as fotos também o são.
Jacques Austerlitz – professor de arte e literatura da Europa, “prisioneiro da clareza de suas reflexões lógicas e da confusão de seus sentimentos” – inicia com o narrador, na estação da estrada de ferro da Antuérpia, um diálogo incomum, permeado por longas digressões sobre arquitetura e outros temas. Nos anos posteriores a esse encontro, os dois voltam a se encontrar, quase sempre por coincidências bizarras. E 30 anos após o primeiro encontro, Austerlitz conta ao narrador a história de sua vida.
“Eu nunca soube quem sou na verdade”, começa ele. Em 1939, sua família o enviara para adoção ao Reino Unido, a fim de que escapasse à calamidade que se aproximava. Viajara sozinho para a casa dos pais adotivos na Inglaterra e, criado num vilarejo do País de Gales, só aos 15 anos descobriu que seu nome não era Dafydd Elias, mas Jacques Austerlitz.
Quando recebe essa revelação do diretor do colégio interno e pergunta o que isso significa, a resposta não lhe explica sua origem. O diretor se contenta em lhe dizer que Austerlitz é o nome de um lugar na Morávia onde Napoleão venceu uma batalha. Como poderia Austerlitz se sentir confortável com o nome que lhe tirava a individualidade, pois trazia à mente não a própria identidade, mas uma batalha famosa?
Cinquenta anos depois de sua chegada à Inglaterra, ele parte em busca de sua história. Recolhe memórias do passado e, na procura pelos pais desaparecidos, visita Praga, a cidade natal. Reencontra as paisagens e línguas da infância e a antiga babá, Vera Rysanova. Descobre que a mãe, enviada ao campo de Terezín e transferida para Auschwitz, ali morrera.
De Praga ele vai a Paris, em busca do pai, e de lá ao subúrbio de Drancy, de onde partiam trens para Gurs, vilarejo ao pé dos Pireneus e lugar do campo de morte, onde o pai fizera sua última parada. As excursões de Austerlitz envolvem perguntas e respostas bem mais duras do que as de Elizabeth Bishop em “Questões de Viagem”, no qual a poeta divaga sobre uma temporada no Brasil.
Susan Sontag, no ensaio “Uma mente de luto”, que versa sobre três romances de Sebald, anteriores a “Austerlitz”, observa que os narradores desses livros viajam “em certas missões de investigação, desencadeadas por uma lembrança ou por notícias de um mundo irremediavelmente perdido”. E escreve: “Viagens de um tipo ou de outro estão no centro de todas as narrativas de Sebald: tanto das peregrinações do próprio narrador quanto das vidas que o narrador evoca”. São viagens que libertam a mente para o jogo de associações, as aflições da memória, o desfrute da solidão. Não raro “é o regresso a um local com o intuito de tratar de um negócio inacabado, reconstituir uma memória, repetir ou completar uma experiência”.
O protagonista reúne histórias, fotos, desenhos, mapas, notícias e lugares na tentativa de encontrar sentido na própria história e Sebald constrói a vida interior de Austerlitz alternando a voz do narrador e a do protagonista. Embora a estrutura da narrativa pareça próxima da estrutura convencional, o leitor teria dificuldade de separar as diferentes vozes se não fosse a constante repetição de “disse Austerlitz”, a lembrá-lo de que lê uma narrativa de segunda mão. Algumas vezes, quando o segundo narrador reproduz a fala de uma terceira pessoa, o recurso é duplicado – “disse Vera, disse Austerlitz” – e assim prossegue o diálogo contínuo e sem travessão.
Tema central do livro é o tempo, que Jacques Austerlitz afirma não ter existência real: “O tempo é de todas as nossas invenções de longe a mais artificial e, por estar vinculada aos planetas que giram em torno do próprio eixo, não menos arbitrária do que seria, digamos, um cálculo baseado no crescimento das árvores [...] Se Newton realmente supunha que o tempo era uma corrente como o Tâmisa, então onde está a fonte do tempo e em que mar ele por fim deságua? [...] Por que o tempo fica eternamente parado em um lugar e voa e se precipita em outro?”
Austerlitz diz que nutre a esperança “de que nada do que nos conta a história seja verdade, o acontecido ainda não aconteceu, mas só acontece no momento em que pensamos nele, o que por outro lado, é claro, abre a perspectiva desoladora de uma tristeza eterna e um sofrimento sem fim”. Mas não podemos ressuscitar os mortos, que, para Austerlitz, ficam à mercê da escolha dos vivos entre lembrá-los ou esquecê-los.
Embora Austerlitz tivesse sido arrancado de Praga para escapar ao nazismo, a palavra “judeu” só aparece na segunda metade do livro. Sebald constrói a história do protagonista devagar, a partir de eventos que, até a metade do livro, não parecem ancorados na tragédia do Holocausto. Acredito que dessa forma nos transmite a ideia de um paradoxo. Aquilo que não pode ser esquecido e precisa de testemunho se depara ao mesmo tempo com a impossibilidade de ser compreendido e, portanto, de ser narrado e representado na sua totalidade.
É preciso coragem para ler esse escritor que nos conta que não existe salvação. Mas, como disse Osman Lins, “os escritos amenos, em geral, exprimem uma atitude de adulação, e não de respeito”. A voz melancólica de W. G. Sebald nada tem de amena, mas nos persuade por sua sinceridade, o tom grave, a precisão e a ausência de qualquer afetação ou ironia.
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