Confesse. Admita, você também já quis. Pode dizer, ninguém está te vendo à frente desse computador em que se lê esse ajuntamento de letrinhas. Vamos, rapaz. Vamos, moça. Confesse. Você já quis dirigir um carrão desses de sonhos, de bacana. De gente fina. De gente de bem, entende? De gente que usa Prada, que usa Givenchy (adoro a sonoridade desse nome), Hermès, Le Boutin, marcas que a gente vê nos shoppings sangue azul da cidade.
Um carrão de sonho nos coloca fora da realidade dos nossos carros financiados, atrasados, Ipvezados, multados, com mancha de sorvete de criança, mancha de óleo do sanduba que as crianças deixaram cair na batata frita gordurenta, pêlo de cachorro, a ponta da mola que espeta a bunda, porta-luvas com rolo de papel higiênico e flanelinha, porta-malas com chupeta para bateria, carrinho de criança, restos dos restos de supermercado, uma camisa que caiu da lavanderia ano retrasado, carpete cheirando xixi ninguém sabe de quem, nosso carro infernal. A dura realidade. A amarga realidade. A realidade mais chavão de todas, aquela nua e crua, lugar comum de todas as realidades factuais que nos oprimem. Verdadeiramente, a realidade é um saco.
Mas, admita. Ser nobre, ser VIP, entrar no camarote da Brahma no carnaval, tirar selfie com as celebridades, as atrizes, os quase esquecidos dos BBB idos e passados. Entrar na sala VIP de aeroporto, cortar aquele filezão alto, meio mal passado, rosado no centro, num prato magnífico, tomando aquele vinho inacreditável, risoto impronunciável, flambado com cognac francês. Ah, ser rico é um detalhe do bom gosto que nos sobra, sabemos, mas falta a grana! A mísera grana, a grana que – pimba! – lá vem ela de novo, a realidade, nos impede de desfrutar essas pequenas estadias de paraíso.
Ser O Cara. No elevador, o vizinho olha com respeito, temor e inveja. O cunhado inveja, a cunhada lamenta ter você errado de irmã ou de filha, era ela, mas foi outra, fazer o quê? A namoradinha do colégio que trocou você pelo cara do Puma, do Chevette, da Camionete, da Pampa, as idades se sucedem, anda à sua procura no facebook, querendo reaproximar-se ereparar o erro cometido.
Encher o saco do trabalho às três da tarde, largar tudo e se mandar. Ir jogar tênis. Que tênis que nada, golfe. Esse, sim, é esporte de gente fina. Golfe, coisa de americano, não de brasileiro que só sabe (e nem isso sabe mais) chutar uma bola.Dona Helena, estou no Golfe Clube. Só passe recados imprescindíveis, do escritório de New York ou Xangai. Avise minha esposa que jantarei por lá, algo bem simples, uma perdiz grelhada. Fui. Jogar golfe, três da tarde, quarta-feira. O mundo explodindo e você, top one, jogando golfe. Mereço. Afinal, toco esse país pra frente. Impeachment já. Eu já teria dado jeito nessa turma de recebedores de bolsa-vagabundo, ô. Meu pai era engraxate, mas eu estou aqui, no golfe. Meritocracia é isso.
O carrão. Cadê a buzina? Carrão tem buzina ou dispõe de um raro sensor fotoeletromagnético tron plus LD14X, somente usado nas máquinas de teletransporte, que tira da frente essas latas andantes que insistem em me retardar… Buzina é coisa de fusca. Nossa, desculpe, bati na boca, lavei com sabão, nunca mais falo essa palavra, nunca mais, prometo. É coisa de, vai, um Vectra! Esse meu carrão dispensa buzina e a música liga sozinha. Tu pensa na cantora e ela, plá!, começa a cantar, nem precisa pedir. Sertanejo Universitário e funk nem toca. Tem um antivírus pra isso. Só música de bacana, americana, francesa, italiana, orquestrada. Carrão!
Quem vai me ver aqui? Abaixar o vidro é mania de taxista que quer economizar combustível e fica parecendo um suã ignóbil. Quem vai me ver aqui? Bacana é uma gente esquisita, compra o carrão e escurece o vidro para não ser visto por quem está na calçada. Que adianta, então?
Nem o farol, semáforo, sinaleira, aquelas três luzinhas, enfim, nem elas avermelham quando eu passo, respeito é isso, rapaz!, até o vermelho esverdeia quando eu passo. Carrão.
O melhor carrão é aquele que é dos outros, mas já quase não é mais, meio apreendido, meio arrestado, um pouco penhorado, quase penhorado, enfim, detalhes jurídicos que não impedem de eu sentir a aceleração de zero a cem, delícia!
Se o Zé das Arruelas pode ser depositário, se o Tonho da Farmácia, o Jão da Pipoca, o Pedro Coveiro, o Manassés, a Magnólia da Barraca do Alface, o Tavinho Chaveiro, a Zilda Porteira, o Mané da Elétrica, o Carlos Coito, o Binho, a Zefa da Feira da Caridade, o Maluco Corintiano, podem ser depositários do carrão, por que não eu? Cadê a lei que se me impede de sê-lo sem jamais ter sido? Cadê, bando de jurisconsultos de Civic financiado? Cadê? É só mimimi.
Vocês de bocão e eu de carrão!
E pensar que me pagam pra tudo isso. Nota preta. Não dá pra esse carrão, mas me divirto pra caramba.
Vidão!
Publicado por João Paulo Morais
Por Roberto Tardelli
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