Por: Leo Rosa de Andrade e Luiz Flávio Gomes
A história do Brasil é uma narrativa de mandonismo e de obediência. Desde a Colônia (1500-1822), nós somos o desdobramento da vontade dos donos do poder territorial (político), econômico e jurídico. Os senhores de terra, e posteriormente os detentores de outros recursos (industriais, financeiros, midiáticos etc.), estabeleceram uma hierarquia e do topo dela têm escrito e controlado a nossa história política e social. Os mandões (da colônia, do Império, da República, das ditaduras e das democracias meramente formais) criaram uma estrutura de dominação clientelista (mantendo-se o cliente na ignorância e sob cabresto), que chegou ao auge nos tempos do coronelismo. Essa prática de relação política consolidou-se durante a Primeira República, também chamada de Velha República (1889-1930), medrando do meio rural e pequenas cidades até a capital do País. O termo “coronelismo” tem origem nos coronéis da Guarda Nacional (criada em 1831), mas coronel foi generalizado pelo povo como título de chefe político.
Essa corporação foi implantada em todos os municípios brasileiros; não obstante ter sido militar, era uma expressão do poder civil. A autoridade sobre o regimento local, exercida sob a patente de coronel, era entregue a um chefe político. Esses chefes, que já eram donos de fato do lugar, ao receberem um poder militar legalmente reconhecido, mais legitimavam o poder de mando, consolidando o prestígio pessoal. A Guarda Nacional foi extinta em 1889, antes, portanto, da República Velha, mas o poder angariado pelos coronéis não morreu. Era dessa gente o poder político, econômico e jurídico. Esse sistema ficou arraigado nos nossos costumes. A hierarquia de cabo eleitoral, de chefe de distrito, de coronel, se não sobrevive com a mesma pujança, perdura como um fundo que infesta o sistema eleitoral até nossos dias. A democracia nascida depois do regime militar (em 1985) é não só de viés basicamente eleitoral (não cidadã), como também “coronelista” (porque o coronelismo continua impregnado na “alma” do brasileiro).
Ainda hoje, a substituição de partido político no comando do governo em qualquer nível não leva à troca do método de governança. Antigamente, é verdade, havia mais coerência no sistema: os que perdiam as eleições compreendiam perfeitamente que “agora é a vez deles”. Então, resignadamente, os derrotados se punham a militar pelo retorno ao poder e ao cofre público. Nos tempos dos coronéis, os mandões, se vencedores, sustentavam os seus com os meios do erário; fora do poder, mantinham a “sua gente” com os próprios bolsos. A questão de honra pública nacional nunca foi o pertencimento cívico a uma ideologia partidária, mas o alinhamento a um potentado local. Ser marcado e reconhecido como alinhado a um coronel nos bons e maus tempos era um sinal de dignidade.
Atualmente, alguns dos que estão fora do poder protestam, mas não no relevante. Note-se, por exemplo, que na CPMI que investigou a roubalheira na Petrobrás alcançou-se o acordo (em novembro/14, entre o PT e o PSDB) de não quebrar o sigilo das empresas envolvidas (que são as financiadoras das campanhas de ambas as siglas). Caso isso fosse feito é de se supor que seria encontrado nos dutos da propina o nome de parlamentares das mais variadas greis partidárias, de situação e de oposição. É isso que somos: um país movido a interesses intermediados por políticos. Já não temos os coronéis (ou eles estão se escasseando), mas preservamos muito da mentalidade clientelista (com tonalidade “servilista”, sem priorizar a distribuição de renda ou educação como fonte de progresso, mesmo que sobre a importância desses temas haja unanimidade nacional). Nossas eleições não são episódios que atraiam por embates de pensamentos, mas por interesses. Um governante não é eleito como um pensador ou um gerente do Brasil, mas como um intermediário de negócios, um despachante de interesses, em geral não confessáveis. Quanto mais satisfaz esses interesses clientelistas, maior a chance de ser eleito (ou de governar sem grandes traumas). Nas eleições de 2014, vencidas novamente pelo PT, muitos eleitores votaram em Dilma por convicção, outros porque suas condições de vida melhoraram (no período de 2003 a 2010), mas ainda preponderou o resgate de práticas de clientelismo “em favor” dos mais carentes. Vejamos a constatação (e o gráfico) do Datafolha:
Sem ilusão, de acordo com nossa tradição histórica patrimonialista, político que não gasta (ainda que seja dinheiro do Estado) não se elege e, salvo exceção, político que não rouba (ou que não se envolve com a corrupção) não tem para gastar. E o povo, regra geral, não quer saber de ideia, quer saber da parte dele: isso é o que explicaria os votos majoritários em Dilma dados pelos pobres e excluídos, pela classe média baixa e classe média intermediária (muitos votaram pensando na preservação das benesses, ainda que socialmente distributivas, que lhe são proporcionadas pelo governo, mas vendidas como bondade do governante: bolsa família, bolsas universitárias, auxílio saúde etc.); já a maioria da classe média alta e do topo (classe alta) votou em Aécio, porque muitos querem a manutenção dos seus privilégios de classe, que correm riscos quando há distribuição de “benesses” para o “povão” (programas sociais).
Mário Magalhães (Folha) escreveu: “Não é verdade que todos os ricos votam em Aécio e todos os pobres votam em Dilma; de cada três entrevistados de classe “alta'', no topo da escala, dois votam no tucano (um vota na Dilma); de cada três “excluídos'', no pé, dois preferem a petista (um vota em Aécio). Como os excluídos e os menos favorecidos nas escalas sociais (alvos preferenciais do clientelismo que não prioriza a educação como alavanca de crescimento) são numericamente majoritários, aí estaria a explicação da vitória de Dilma.
O povo é tocado a marketing, promessas, favores e valores, sejam os valores privados, tirados do bolso do político que roubou ou vai roubar, sejam os valores públicos, levados pelas bolsas clientelistas que o PSDB inventou e que o PT fatura. E a tudo se justifica, na lógica de nossos deploráveis hábitos. Não há petista que reconheça que seu partido roubou (sim, não é só o PT: isso é verdade) da Petrobrás, apesar das evidências e mesmo das confissões; todo petista alega julgamento político do Mensalão, apesar de os ministros do STF terem sido (majoritariamente) nomeados por Lula e Dilma. Não há petista que reconheça que essas verbas bilionárias moveram a eleição e reeleição de Dilma.
Ao tempo da Ditadura, o Nordeste ganhava favores e votava na Arena; os nordestinos eram execrados como alienados pela “esquerda”. Hoje o Nordeste (assim como os carentes espalhados por todo o País) majoritariamente “retribui” em votos o “reconhecimento” pelos benefícios públicos que lhe são dirigidos. É o mesmo clientelismo, mas a esquerda, hoje, nomeia esse hábito de consciência eleitoral. Somos isso e nos justificamos. Não vai ser fácil superar a nossa própria História. Mas sem superá-la não seremos nunca uma nação civilizada de primeiro mundo.
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