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domingo, 29 de julho de 2012

Já lhe ocorreu que um país pode não dar certo?”

Publicado no JB – 31/03/1991 antes do plebiscito de 1993.

A monarquia foi o único sistema político da história brasileira capaz de preservar o interesse público. (G. R. R. P.)

Já lhe ocorreu que um país pode não dar certo?”

Pergunta feita ao economista André Lara Resende pelo colega argentino Roberto Frankel.

A palavra república vem do latim, res publica. Ao pé da letra, significa coisa pública. Numa tradução mais substantiva, interesse público, ou ainda, bem comum. Talvez em função disto, sejamos levados a pensar na forma republicana de governo e na preservação do interesse público como expressões sinônimas. Esta é a primeira armadilha mental que temos que desarmar para analisar, sem preconceitos, a questão levantada pelo plebiscito de 1993 quanto à forma de governo: monarquia ou república. A segunda é fazer a defesa do regime republicano num plano puramente teórico e abstrato, deixando de levar em conta nossas tradições históricas e culturais. Sem essas precauções, a tendência é tomar como “óbvia” a opção a favor do regime republicano, reduzindo a questão a uma mera escolha entre parlamentarismo e presidencialismo, ou seja, ao sistema de governo.

A pergunta feita a André Lara Resende traz à baila, em última instância, o problema da não-preservação do interesse público em determinados países. De forma semelhante, o plebiscito de 1993 nos abre uma oportunidade histórica de discutir e tomar uma atitude face a esta questão não resolvida por nossa malfadada experiência republicana. Afinal, ostentarmos, após cem anos de República, a pior distribuição de renda do mundo é um fato-síntese mais do que representativo desse descaso pelo bem comum. A estagnação da renda real per capita na década passada é outro indicador, mais recente mas não menos constrangedor, do mesmo fenômeno. Mas ? brasileiro, profissão esperança ? não nos conformamos em não dar certo. Daí a perplexidade de Lara Resende ao pensar que este possa ser o caso.

Quando um país reescreve sua constituição pela sétima vez ? e com ampla participação popular ? para chegar à conclusão, não muitos meses depois, que pontos fundamentais da carta permanecem insatisfatórios, ele deveria se perguntar o que está acontecendo. Indagar, no mínimo, se houve algum período de seu passado em que as instituições vigentes foram capazes de preservar o interesse público. E examinar, em caso afirmativo, que fatores teriam permitido que tal acontecesse. Podemos, com essa finalidade, distinguir dois grandes períodos de nossa história, marcados por profunda diferença no trato da res publica: a monarquia e a república.

Existem hoje sólidos estudos que comprovam ter sido nosso período monárquico independente a época em que atingimos o mais elevado índice de moralidade pública que o país jamais conheceu. Atribuir todos os méritos à figura de D. Pedro II é contar somente parte da história. É fazer tábua rasa dos sábios dispositivos de nossa carta imperial, uma engenhosa combinação de hábitos e costumes prevalecentes com os novos valores que sacudiam a Europa no início do século passado. Ela que, no julgamento abalizado e insuspeito de Afonso Arinos, foi a melhor constituição que o país já teve. Mas, afinal, o que a tornava tão especial?

A maneira mais reveladora de perceber a profundidade da obra de engenharia institucional produzida pelos autores do texto é analisá-la à luz de A sociedade aberta e seus inimigos, de Karl Popper. Mas não só isso. É fundamental levar em conta também o peso do direito baseado nos costumes. Em especial aquele estabelecido pelo compromisso solene de um príncipe (D. Pedro I) de aceitar o princípio da limitação do poder real? que frutificou e se ampliou em seus sucessores. Posto isto, é relativamente fácil compreender por que o Brasil foi institucionalmente um país bem resolvido no século XIX, mas não no século XX.

A “teoria” popperiana da democracia substitui a questão platônica do “Quem deve governar?” por outra muito mais prática e objetiva: “Como o Estado deve ser constituído para que maus governantes possam ser destituídos sem derramamento de sangue, sem violência?” Esta formulação torna mais fácil dar uma resposta definitiva à insatisfação dos povos, em diferentes épocas e lugares, com os maus governantes. Liquida, de saída, com respostas românticas do tipo: os melhores, os operários, os filósofos, etc. E sabiamente reconhece que maus governos podem ser engendrados por qualquer classe social. Em todos os tempos e povos, o ponto fundamental é que durem pouco.

Assim, dispor de instrumentos legais para destituí-los, eximindo a sociedade de arcar com intensos custos ? sociais, políticos, econômicos e mesmo culturais ?de mantê-los, deveria ser, segundo Popper, um imperativo do interesse público. Ele faz ainda uma crítica à representação proporcional, apontando o voto distrital, em um sistema bipartidário, como sendo o melhor arranjo institucional para que a sociedade possa responsabilizar e punir os maus políticos e suas políticas equivocadas. Os distritos eleitorais obrigariam os deputados a prestar contas mensalmente a seus eleitores de suas atividades no Congresso. Ainda que não nos pareça imprescindível, a existência de apenas dois partidos os levaria a um processo contínuo de autocrítica, pois não haveria como transferir responsabilidades a terceiros. Um arcabouço institucional desse tipo forneceria os incentivos corretos para a preservação do interesse público, ou seja, para que um país desse certo.

Como se encaixariam os dispositivos da carta imperial e a organização político-partidária do Império na moldura descrita acima? Bastante bem. Algumas pinceladas comporão o quadro.

O dispositivo mais importante, que respondia a questão maior levantada por Popper, era o que facultava ao Imperador, ouvido o Conselho de Estado, dissolver a Câmara dos Deputados, convocando imediatamente novas eleições. Este dispositivo funcionou a contento na prática, livrando o Brasil de impasses institucionais propícios ao surgimento de regimes de força, já tão comuns na América Hispânica do século XIX. Críticas que vêem nessa prerrogativa, derivada do poder moderador, uma concentração desmedida de poder nas mãos do Imperador, ignoram o papel insubstituível dos costumes no processo de consolidação de hábitos democráticos e responsáveis de exercício do poder. Este foi indiscutivelmente o grande mérito de Pedro II: estimular e normalmente acatar decisões amplamente debatidas pelos órgãos de representação do poder. Ao mesmo tempo, desfrutava constitucionalmente de uma posição que o colocava acima das paixões partidárias. Fazia questão de obedecer ao que ele denominava opinião nacional, que não era necessariamente a opinião apregoada como pública, pois era aquela que refletia os interesses de longo prazo do país.

Essa didática da negociação, orientada pela bússola do interesse público, permitiu ao Brasil, durante o século XIX, avançar consideravelmente em matéria de costumes políticos. Ela foi tão importante quanto ter uma constituição escrita. Alegar que se tratava de via de mão única, em que o Imperador magnanimamente atendia aos reclamos de seus súditos sem contrapressões populares, é ignorar que já houve em nossa História não apenas o dia do Fico, mas também o dia do Vai-te embora, quando D. Pedro I foi praticamente obrigado a abdicar. Afirmar, por outro lado, que D. Pedro II se substituía à opinião pública, que não teria voz, para fazer valer o interesse público, diz muito pouco a respeito dos hábitos e costumes da época. Pois encobre tanto a qualidade de nossa vida parlamentar quanto a vitalidade de nossa imprensa na segunda metade do século XIX. A primeira confirmada por visitantes estrangeiros ilustres que assistiram a sessões do parlamento do Império. A segunda reconhecida abertamente pelo historiador marxista, e portanto insuspeito, Leoncio Basbaum. A república é que nunca nos proporcionou meio século seguido de liberdade de imprensa, como houve sob o segundo reinado. Ademais, ao realizar a defesa intransigente do bem comum, Pedro II nada mais fazia do que obedecer, em sua essência, a vontade popular.

Mesmo as críticas feitas ao fato de os membros do Conselho de estado serem nomeados pelo Imperador esquecem que os permanentes eram vitalícios, o que lhes conferia independência de julgamento face ao próprio monarca. Não era só isso. A constituição os responsabilizava pelos conselhos dados ao Imperador que não fossem fiéis ao espírito de defesa do bem comum. Mais importante ainda: na prática, os conselheiros tinham, de fato, voz ativa nesse processo, em última instância, consensual. O próprio líder da oposição era membro do Conselho de estado, dando às decisões tomadas um caráter mais amplo, não apenas partidário, em que havia espaço para que governo e oposição não perdessem de vista o interesse público.

Quanto à existência de certo artificialismo na mecânica de troca de gabinetes, em que o Imperador normalmente solicitava ao líder da oposição para formar novo governo, não devemos esquecer que acabou gerando equilíbrio. Mesmo que os procedimentos adotados não garantissem integralmente a lisura das eleições, o caminho para a democracia real estava sendo trilhado. De um lado, pela freqüência com que eram realizadas, aspecto este pouco lembrado em nossos manuais de história. De outro, pela alternância no poder dos dois partidos então existentes, o Liberal e o Conservador. Tanto isto foi fato que, ao final do Império, cada partido ficou cerca de 50% do tempo total no poder. Até mesmo a exigência, que se fazia naquela época, de um certo nível de renda anual para que o eleitor pudesse se qualificar como tal, ainda limitasse a participação eleitoral, teve o mérito de dificultar a compra de votos. Houve ainda, desde 1861, uma Comissão Permanente de Poderes encarregada de verificar a lisura do pleito, o que deixa claro a preocupação de aperfeiçoar o sistema eleitoral, que registrou progressos significativos ao longo do Império. A república, por sua vez, só cuidou de implantar a Justiça Eleitoral em 1934, às vésperas do Estado Novo…

Durante nosso período monárquico independente, a cobrança de responsabilidade às classes dirigentes não se restringia apenas ao Legislativo, que podia ser dissolvido, tendo os dois partidos então existentes que enfrentar novas eleições. Estendia-se ao Executivo que, na pessoa do Presidente do Conselho de Ministros, tinha de prestar contas regulares de seus atos ao Congresso e ao imperador. Ia, na verdade, mais além, englobando o Judiciário, cujos juizes, em casos de extrema gravidade, podiam ser suspensos de suas funções pelo Imperador e remetidos a julgamento na forma da Lei. É importante ter em mente que essas prerrogativas do Imperador não eram pessoais, mas sempre exercidas no âmbito do Conselho de Estado, vale dizer, refletiam as posições do Conselho e não raramente as do Imperador. Este último seria melhor caracterizado como uma espécie de “ombudsman”, um fiscal da opinião pública junto ao Governo. Havia, portanto, fiscalização permanente do poder em todas as suas esferas.

Cem anos depois, continuamos órfãos nas mãos de maus governantes, sem ter como fiscalizá-los e puni-los por seus desmandos. Somos apenas chamados a pagar a conta. Haja visto episódios atuais como salários de deputados no mesmo patamar e às vezes acima de seus congêneres americanos, cuja renda per capita é oito vezes maior que a nossa, ou, o caso, até hoje sem punição, dos quatro juizes que se concederam liminares mútuas para que pudessem movimentar seus recursos retidos pelo Plano Collor.

Como vemos, o arcabouço político-institucional do Império soube antecipar-se às preocupações de Karl Popper, realizando obra digna de justa admiração ainda hoje. Na verdade, foi além. Buscou fundar nos costumes a prática da fiscalização permanente dos atos dos governantes pelos governados. A cristalização desse processo foi interrompida pela proclamação da república, um retrocesso institucional, na medida em que nunca dispôs de instrumentos eficazes de fiscalização daqueles que detêm o poder. Ao longo do nosso século XIX, os direitos individuais de cidadania foram protegidos e paulatinamente ampliados sem chegar ao prodígio, como ocorre nos dias atuais, de quase obstruir na prática os mecanismos de punição estabelecidos pelas sociedades democráticas para fazer prevalecer o interesse coletivo sobre os corporativistas.

A essa altura, o leitor deve estar se perguntando se não seria possível fazer algo semelhante sob a forma republicana de governo. Em princípio, sim. Na prática, não.

A República no Brasil nasceu fazendo tábua rasa desses valores permanentes, sempre presentes nas experiências genuinamente democráticas. Nasceu fechando o Congresso, censurando a imprensa e, pior, restabelecendo um velho mau hábito, o de conspirar. Aquela terrível prática de buscar criar condições para vir a tomar decisões à revelia da comunidade. Não espanta, pois, que ditaduras e conspirações andem sempre juntas. Conspiradores podem até ser profissionais do ramo, mas a cultura da conspiração é e será sempre amadora. A razão é simples: como nas ditaduras, os interessados não são consultados, tendo que engolir fatos consumados. Mais cedo ou mais tarde, entretanto, a comunidade afetada acaba regurgitando o que lhe foi imposto à força.

O que ocorre hoje na União Soviética ilustra, independentemente do adjetivo do dia, a sina das ditaduras. Quando “dão certo” a curto prazo, não o dão a médio, mas se derem, certamente não funcionarão a longo prazo. A República brasileira foi um produto da cultura amadora da conspiração, vale dizer, da visão ditatorial positivista misturada aos traços autoritários de nossa formação histórica. Jogou para o alto uma tradição liberal e de negociação, que marcou o Império, para cair nos braços do arbítrio. O peso da participação militar, que praticamente prescindiu da elite civil e ? pior ? do próprio povo, reforçou em muito o caráter autoritário do movimento. Diferentemente do Império, em que as eleições eram freqüentes (em média, uma a cada dois anos) e que chegou a ter como eleitores cerca de 10% de uma população de 14 milhões de almas, a República, de saída e por quatro décadas, se esmerou nas eleições a bico-de-pena. Atas escritas na véspera das eleições, dispensando a apuração de votos, tornou possível o sistema de “contagem” de votos mais rápido de que se tem notícia na História: os vencedores já eram conhecidos na véspera!

Foram tais práticas de sistemático desrespeito à vontade popular que prepararam o caminho para o novo regime inaugurado em 1930. Já que o povo há muito não opinava e os instrumentos de defesa do interesse público tinham enferrujado, a ascensão de um ditador ao poder era quase uma decorrência lógica. Assim foi até 1945, período em que atingimos nosso mais baixo índice de cidadania: a imagem melancólica de um povo entregue à vontade de um só homem. A restauração democrática de 1946 infelizmente refletiu, mais do que seria desejável, um movimento que veio de fora para dentro: a derrota do fascismo. E tanto isto foi fato que, não muito depois, em 1964, os militares se instalaram fisicamente no poder até 1985. Durou vinte e um anos o novo período ditatorial. Terminou sepultando a pretensão quase secular de nossos militares em nos dizer como deveríamos ser como povo.

A progressiva exclusão do povo da arena política é, pois, obra da República. Coube a ela patrocinar um lento, mas visível, retrocesso institucional. Não se trata de saudosismo, mas de reconhecer que os valores que nortearam as instituições e costumes políticos de nosso século XIX ? liberdade de imprensa, expressão e pensamento, alternância dos partidos no poder, primado do poder civil, probidade na defesa do interesse público e cobrança de responsabilidade às classes dirigentes ? tinham características permanentes, que os tornam atuais ainda hoje.

Em nosso caso específico, os argumentos contra a volta a um regime parlamentarista monárquico não se sustentam. Tempo, tradição e liquidação da tutela militar resumem a constelação de fatores que desaconselha votar pela manutenção do regime republicano em 1993, até mesmo naqueles casos em que esta é a preferência inicial do eleitor. Afinal, mais importante do que a forma de governo de um país, é saber qual delas tem reais possibilidades de funcionar na prática. Já vimos que, no passado, nossas instituições monárquicas deram conta do recado. Vejamos, agora, por que têm futuro.

Todos nós brasileiros temos hoje clara consciência do grau de abastardamento a que chegaram nossos costumes políticos. São os próprios políticos que o admitem. O fator tempo assume, assim, importância vital. Mantida a República, a regeneração desses costumes, além de duvidosa, tomaria tempo excessivo. O grau de neutralidade de um presidente da república seria certamente muito inferior ao de um monarca, que poderia se dar ao luxo de ter compromisso apenas com a defesa do interesse público, sem se envolver em lutas partidárias. Este papel um rei ou imperador pode exercê-lo de imediato, na medida em que seus interesses privados se confundem com o interesse público. Mas décadas seriam necessárias até que nossos viciados costumes políticos permitissem desempenho semelhante por parte de um presidente da República num sistema parlamentarista republicano.

Colocados frente à opção Monarquia ou república, existem aqueles que contra-argumentam com nossa suposta falta de tradição monárquica. Reatar-nos-ia apenas a tradição republicana e, portanto, a República, que poderia ser presidencialista ou parlamentarista. Passam por cima, com a tranquilidade que só o esquecimento permite, dos quatro séculos durante os quais este país foi uma monarquia. Não temos, sim, é tradição republicana, que mal completou um século de existência. A presença de reis, príncipes e princesas no inconsciente coletivo e nas festas populares não deveria ser vista pura e simplesmente como algum tipo de sublimação, mas também como reflexo de preferências recônditas da alma popular brasileira. José Murilo de Carvalho deixa isto muito claro em A formação das almas ? O imaginário da República: a incapacidade revelada pelo novo regime de conquistar a alma popular. Ademais, haveria algo mais ridículo do que menosprezar o povo inglês por suas preferências monárquicas? Ou mais insensato do que ignorar que essas mesmas preferências de vários povos europeus e do próprio povo japonês são plenamente compatíveis com as exigências do mundo moderno, a tal ponto que, dentre os 25 países mais ricos e democráticos do mundo, 18 são monarquias.

No Brasil, diga-se de passagem, nunca faltou à Monarquia entusiástico apoio popular, até mesmo em levantes regionais, com exceção de uns poucos, justamente aqueles em que o cheiro da caudilhagem era mais forte… O júbilo popular esteve presente à Aclamação de D. Pedro II, mesmo tendo ocorrido pouco depois do episódio traumático da abdicação de D. Pedro I.

Quanto à tutela militar, liquidá-la interessa, em primeiro lugar, ao povo brasileiro, mas também aos nossos militares, por mais estranha que possa parecer esta última afirmação à primeira vista. Hoje, nós e eles sabemos que resultou em muito arbítrio atribuir-lhes a função espúria de poder moderador. Na verdade, a proclamação da república nasceu de dois equívocos fatais com os quais qualquer povo que aspire à plena cidadania não pode transigir. O primeiro deles foi a petulância e indisciplina de um marechal do Império ao pôr abaixo pela força um governo eleito. O segundo foi o de implantar um novo regime passando por cima da vontade popular, indubitavelmente monarquista na época. O gesto do marechal Deodoro e de mais meia dúzia de militares exaltados abriu espaço a duas constantes perniciosas de nossa vida republicana: o golpismo e a tendência a tutelar a vontade popular. Esta última a tal ponto que até “revoluções” foram feitas antes que o povo as fizesse…

O drama histórico do golpismo é que ele atua contra os militares enquanto instituição. Na qualidade de golpistas, são e serão sempre militares de segunda grandeza, incapazes de conquistar o respeito de todos aqueles que prezam sua cidadania. Pior: chamam sobre si a responsabilidade pelos atos cometidos sem ter o respaldo de um governo legitimamente constituído. Paralelamente à solidez das instituições, esta parece ser uma das razões mais importantes por que os militares americanos fogem do golpismo como o diabo da cruz. Um exemplo ilustrativo diz tudo: como eximir de responsabilidade a elite civil americana pela guerra do Vietnam? A instituição militar como tal foi preservada no sentido de ter se mantido fiel à disciplina, à obediência às ordens recebidas de governantes legitimamente eleitos. A estes cabe, em última instância, a responsabilidade histórica pelos erros cometidos. A longo prazo, o golpismo cobra dos militares um preço muito elevado: põe em risco a própria instituição militar ao desvirtuá-la e abastardá-la. A tendência a tutelar a vontade popular, por sua ver, provocou a progressiva eliminação do espaço reservado à defesa do interesse público, com as conseqüências que hoje todos nós sentimos na própria pele.

A opção a favor do parlamentarismo monárquico, com voto distrital puro ou mesmo misto, nos livraria do vício republicano brasileiro de fugir aos mecanismos efetivos de cobrança de responsabilidade às classes dirigentes. A crise brasileira não será resolvida apenas fazendo do Congresso Nacional o fórum dos grandes debates e decisões nacionais. É fundamental que os representantes do povo ali presentes passem a prestar contas regulares de suas posições em plenário aos seus distritos eleitorais. E que enfrentem novas eleições quando o respaldo popular não for nítido. Pois restaurar o crédito público no Brasil de hoje não é meramente um problema econômico-financeiro. É muito mais amplo. Sem resgatá-lo em suas dimensões política, social e cultural, continuaremos à deriva

1 Gastão Reis Rodrigues Pereira é Doutor em Economia Regional pela Universidade da Pensilvânia nos EUA. É escritor, jornalista e empresário especializado na formação de empreendedores. Atualmente é diretor-financeiro da Eletro Metalúrgica Universal Ltda. e diretor-sócio da Universal Incorporadora e Participação Ltda. É homem de notável cultura e senso prático.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

A guarânia do engano


CHIQUI AVALOS, UM DOS PRINCIPAIS JORNALISTAS PARAGUAIOS, QUE APOIOU A CANDIDATURA DE FERNANDO LUGO À PRESIDÊNCIA, CONTA POR QUE, AGORA, FOI A FAVOR DO IMPEACHMENT; ELE REVELA ATÉ QUE LUGO PEDIU UM JATINHO A ITAIPU; PODE-SE CONCORDAR OU NÃO, MAS É UMA AULA DE HISTÓRIA

26 de Junho de 2012 às 13:19 

“A história do Brasil, vista desde o Paraguai, é outra”
(Millôr Fernandes)

Como num verso célebre de meu inesquecível amigo Vinicius de Moraes, “de repente, não mais que de repente”, alguns governos latino-americanos redescobrem o velho e sofrido Paraguay e resolvem salvar uma democracia que teria sido ferida de morte com a queda de seu presidente. Começa aí um engano, uma sucessão de enganos, mentiras e desilusões, em proporção e intensidade que bem serve a que se companha uma melodiosa guarânia, mas de gosto extremamente duvidoso.
Sucedem-se fatos bizarros na vida das nações em pleno século XXI. Uma leva de chanceleres, saídos da espetaculosa e improdutiva Rio+20, desembarca de outra leva de imponentes jatos oficiais no início da madrugada de um incomum inverno, e - quem sabe estimulados pela baixa temperatura  - se comportam com a mesma frieza com que a “Tríplice Aliança” dizimou centenas de milhares de guaranis numa guerra que arrasou a mais desenvolvida potência industrial da América Latina.
Surpresos? Pois, sim, não é para menos. Éramos ricos, muito ricos, industrializados, avançados, educados, cultos, europeizados, amantes das artes, dos livros, das óperas, do desenvolvimento. Nossos antepassados brilharam na Sorbonne e assinaram tratados acadêmicos, descobertas científicas ou apurados ensaios literários. A menção de nossa origem não provocava o deboche ou ironia tão costumeiros nos dias tristes de hoje, mas profundas admiração e curiosidade dos que acompanhavam nossa trajetória como Nação vencedora.
Não ficamos célebres como contrabandistas ou traficantes, mas como povo empreendedor e progressista. A organização de nossa sociedade, a intensa vida cultural, o progresso econômico irrefreável, a bela arquitetura de nossas cidades, a invulgar formação cultural de nossa elite, a dignidade com que viviam nossos irmãos mais pobres (sem miséria ou fome) impressionavam e merecem o registro histórico.  A rainha Vitória, que não destinou ao resto do mundo a mesma sabedoria com que governou e marcaria para sempre a história do Reino Unido, armou três mercenários e eles dizimaram a potência que, com sua farta e boa produção e espírito desbravador, tomava o mercado da antiga potência colonial aqui, do lado de baixo do Equador.
Brasil, Argentina e Uruguay, como soldados da Confederação, nos arrasaram. Nossos campos foram adubados pelos corpos de nossos irmãos em decomposição, decapitados à ponta de sabre e com requintes de sadismo. O Conde D’Eu, marido de quem libertaria os negros e entraria para a história, comandava pessoal e airosamente o massacre. Os historiadores, essa gente bisbilhoteira e necessária, registraram seu apurado esmero e indisfarçável prazer. O nefasto delegado Sérgio Fleury teve um precursor com quase um século de antecedência...
Nossas cidades terminaram por ser habitadas por populações majoritariamente compostas de mulheres e crianças. Poucos homens restaram. Pedro II, que marcaria a história do Brasil por sua honradez, comportou-se de forma impressionante nessa obscura página da história do Brasil, mas inversamente conhecidíssima na história de meu país: não moveu uma palha ou disse palavra acerca do sadismo de seu genro criminoso.
Documentos por mim revirados no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, mostram a assinatura do velho Imperador autorizando a compra de barcos, chatas, cavalos e tudo o que fosse necessário para uma caçada de vida ou morte (mais de morte, certamente) à Lopez. Não bastava derrotar o déspota esclarecido, o republicano que os humilhava, o que havia desafiado todos os impérios, o da Inglaterra, o do Brasil, o da Espanha... Era preciso assinar seu epitáfio e esculpir sua lápide. E assim foi feito.
Derrotados, nunca mais fomos os mesmos. Passamos a ser conhecidos por uma República já bicentenária, mas atrasada em comparação aos seus vizinhos. Enfrentamos uma guerra cruel com a Bolívia na primeira metade do século passado. Roubaram-nos importante faixa territorial do Chaco, região paradoxalmente inóspita e riquíssima. Ganhamos a guerra. Nossos soldados mostraram a valentia e patriotismo que brasileiros, uruguaios e argentinos bem conheceram meio século antes. Nossa incipiente aviação militar e seus jovens pilotos assombraram os experts norte-americanos, pela refinada técnica e o sucesso de suas ações contra o agressor. Mas numa história prenhe de ironias, vencemos a guerra e... ...jamais recuperamos as terras! Os bolivianos, que jamais olham nos olhos nem das pessoas nem da história, certamente se rejubilam em sua “andina soledad”, e como os argentinos depois da inexplicável Guerra das Malvinas, sabem-se “vice-campeões”...
Mal saímos da Guerra do Chaco e experimentamos a mesma e usual crônica tão comum a rigorosamente todos os outros países latino-americanos. Golpes e contra-golpes, instantes de democracia e hibernações em ditaduras ferrenhas. Presidentes  se sucederam despachando no belíssimo Palácio de Lopez e vivendo na vetusta mansão de Mburuvicha Roga (“A casa do grande chefe”, em guarani). Uns razoáveis, outros deploráveis. Nenhum deles, entretanto, recuperou a glória perdida dos anos de riqueza, opulência e fartura. Um herói da Guerra do Chaco tornou-se ditador e nos oprimiu por mais de três décadas. Homem duro, mas de hábitos espartanos e por demais interessante, o multifacético Alfredo Stroessner não recusou o papel menor de tirano, mas construiu com o Brasil a estupenda hidrelétrica de Itaipu, a maior obra de engenharia de seu tempo, salvando o Brasil de uma hecatombe energética. Foi parceiro e amigo de todos os presidentes do Brasil de JK a Sarney. Com os militares pós-64 deu-se às mil maravilhas, mas foi de suas mãos que o exilado João Goulart recebeu o passaporte com que viajaria para tratar sua saúde com cardiologistas franceses. Deposto, o velho ditador morreu no exílio, no Brasil. Nós que o combatíamos (nasci em Buenos Aires, onde meu pai, empresário de sucesso, mas adversário da ditadura, curtia seu exílio) jamais soubemos de ação qualquer, uma que fosse, do Brasil em seus governos democráticos contra a ditadura do general que lhes deu Itaipu.

A vez de Fernando Lugo 
Depois de duas décadas da derrubada de Stroessner, nos aparece Fernando Lugo. Sua história é peculiar. Era bispo de San Pedro, simpaticão e esquerdista, pregava aos sem-terra e parecia não incomodar ninguém, nem os fazendeiros da área. Pelos idos de 2007 o então presidente Nicanor Duarte Frutos, um jovem jornalista eleito pelos colorados, resolve seguir o péssimo exemplo de Menem, Fujimori e Fernando Henrique, e deixa clara sua vontade de mudar a Constituição e permanecer no presidência, através do instituto inexistente da reeleição. Seu governo era mais que sofrível e – descupem-nos a imodéstia latreada em nossa história – nós, os paraguaios, não somos dados ao desfrute de mudar nossa Carta Magna ao sabor da vontade de presidente algum. O país se levantou contra a aventura e ele, que o bispo bonachão, justamen te por não ser político e garantir que não alimentava qualquer ambição de poder, é escolhido para ser o orador de um grande ato público, com dezenas de milhares de pessoas no centro de Assunção. Pastoral, envolvente, preciso, o Bispo de San Pedro cativou a multidão, deu conta do recado e catalisou imensa indignação da cidadania. A aventura continuísta de Nicanor não foi bem-sucedida, mas, com a sutileza de um príncipe da Igreja nos intricados concílios que antecedem a fumacinha branca, nos aparece um candidato forte à presidência da República: ‘habemus candidatum’! A batina vestia mais que um pastor, escondia um homem frio, ambicioso, ingrato e profundamente amoral.
Seu primeiro problema foi com a Santa Madre Igreja. O Vaticano, certamente por saber algo que nós não sabíamos, vetou sua disposição política. Não, de jeito algum, ele poderia ser candidato. A igreja católica combateu a ditadura do general Stroessner com coragem e ação, mas não queria ocupar a presidência do país. “Roma coluta, causa finita”(“Roma falou, questão decidida”), mas não para Lugo, que deixou seu bispado, despiu a batina e virou às costas a quem lhe educou e lhe acolheu no seu seio. Poucos e corajosos colegas Bispos e padres o apoiaram abertamente. Na última sexta-feira, depois de três anos sem vê-lo ou serem por ele procurados, esses mesmos amigos e apoiadores foram até a residência presidencial pedir – em vão – que Lugo renunciasse à presidência do Paraguay para que se evitasse derramamento de sangue.
Candidato sem partido, entretanto com as simpatias da clara maioria do eleitorado. Filiou-se, pois, a um partido e o escolhido foi o centenário e respeitável PLRA, dos liberais, há mais de 60 anos fora do poder e com a respeitável bagagem de uma corajosa oposição à ditadura stroessnista. Como um Jânio Quadros, Lugo filiou-se ao Partido Liberal Radical Autêntico e usou sua bandeira, sua história e sua estrutura capilarizada em toda a sociedade paraguaia. E depois deu-lhe um adeus de mão fechada, frio e indiferente.
Eleito, desfez-se de todos os companheiros de jornada. Um a um. Stalin não apagou tantos nas fotos oficiais do Kremlin como o ex-bispo o fez. Mas demitiu os mais qualificados, por sinal. Restaram-lhe os cupinchas, os facilitadores de negócios e de festinhas íntimas, os “operadores” e alguns incautos esquerdistas para colorir com as tintas de um risível ‘socialismo guarani’ o governo de um homem que chegou como o Messias e terminaria como um Judas Escariotes.
Lugo poderia emprestar seu nome e sua trajetória de vida política (e pessoal, também) ao mestre Borges e tornar-se uma das impressionantes personagens da “História Universal da Infâmia”. Um infame, não mais que isso! Mal eleito e empossado, sucedem-se escândalos e se revela seu procedimento. Filhos impensados para um supostamente casto Bispo. Vários. Todos jamais reconhecidos ou amparados, gerados com mulheres as mais pobres e sem instrução alguma, uma delas com apenas 16 anos quando da gravidez. Se traíra a sua Igreja, por qual razão não nos trairia? E traiu.
Não passou um mês sequer durante seus três anos de governo sem que viajasse a um país qualquer. Com razão ou sem nenhuma, para conferências esvaziadas ou cerimônias de posse de mandatários sem importância ou relevo para o Paraguay. As pompas do poder o abduziram como a nenhum déspota de república bananeira do Caribe. Os comboios de limusines com batedores estridentes, as festas e beija-mãos, os eternos e maviosos cortesãos do poder, as belas mulheres, as mesas fartas, os hotéis cinco estrelas, a riqueza, a opulência, os “negócios”. O despojado ex-bispo tornou-se grande estancieiro. O presidente que tomou posse calçando prosaicas sandálias como símbolo de humildade, revelou-se um homem vaidoso e fetichista. Como que a vestir a mentira em que ele próprio se tornou, passou a enxergar elegantes e bem-cortadas túnica s encomendadas à alfaiates da celebérrima e caríssima Savile Row, templo londrino da moda masculina. No detalhe, o estelionato (mais um): colarinhos eclesiásticos. Afeiçoou-se a lindas e jovens, digamos, “modelos”, que floriram sua vida e a banheira Jacuzzi que mandou instalar na austera e velha residência presidencial. Muitas delas o precediam mundo a fora, esperando-o em hotéis fantásticos e palácios, nas vilegiaturas internacionais. Viajavam com documentos oficiais. Kaddafi auspiciava passaportes diplomáticos a terroristas, Lugo a prostitutas.

O veto de Itaipu 
Sua afeição pelos jatinhos e jatões chegou às raias do fetiche: passou boa parte de seu peculiar mandato a bordo deles. Fretados à empresas de táxi aéreo de outros países, mandados pelos amigões Hugo Chávez e Lula, outras emprestados sabe-se lá por um tais e misteriosos amigos. Chocou-se com o brasileiro Jorge Samek, fundador do PT e competente gestor, que na presidência brasileira da Itaipu resolveu vetar capricho juvenil do ex-bispo e delirante presidente paraguaio: a poderosa binacional compraria um jato para seu uso. Um Gulfstream, quem sabe um Falcon, ou até um brasileiríssimo Legacy, mas ele precisava ardentemente de um jato para chamar de seu. Depois mandou que o comandante da Força Aérea negociasse um Fokker 100, adaptado com suíte e ducha. Nada feito, o raio de ação seria pequeno e ele precisava ganhar o mund o! Por fim, nos estertores de seu governo, entabulava a compra de um Challenger, usado mas chique, de um cartola do futebol paraguaio. O preço, como sempre, mais um escândalo da Era Lugo: pelo menos o dobro de um modelo novo, saído de fábrica...
Obras viárias? Imagine. De infraestrutura? Nenhuma. Modernização do país? Nem pensou nisso. Crescimento econômico? Sim, mas por obra de uma agricultura forte, de empresários jovens e ambiciosos, de uma indústria florescente e de um ministro da economia que destoou da regra geral do governo Lugo: competente e austero, imune às vontades do presidente e distante da escória que o cercava. A cada novo dia, no parlamento, nas redações, nos sindicatos, nos foros empresariais, nos encontros de amigos, um novo comentário, uma nova história de mais uma negociata dos assessores e companheiros de Lugo. Proporcionalmente, nem na ditadura de Stroessner (mais de três décadas), se roubou tanto quanto no governo pseudo-esquerdista de Fernando Lugo (menos de três anos).  Já com Lugo deposto, seu secretário mais forte, Miguel Lopez Pe rito, telefonou à diretoria da Itaipu solicitando a bagatela de US$ 300 mil para organizar uma manifestação em defesa do governo. Queria ao vivo e a cores, "na mala", por fora, não contabilizado, no "caixa 2". Que tal? Fato tornado público por um diretor da binacional e revelador do modus-operandi da verdadeira quadrilha que comandava o país.

O impeachment
Seu processo de “Juízo Político” – algo como um processo de impeachment – está previsto na Constituição do Paraguay, e não foi uma travessura histórica de meia dúzia de líderes políticos ou parlamentares revidando as descortesias de Lugo para com os partidos, os empresários, os paraguayos todos. Que tipo de presidente era esse que teve 73 deputados votando por sua queda contra apenas 1 solitário voto? Que espécie de chefe da Nação era esse que teve 39 votos contrários contra apenas 4 senadores fiéis ao seu desgoverno? Não teve tempo, apenas duas horas para defender-se. Ora, a Constituição não determina tempo, apenas assegura-lhe o direito de defesa, exercido através de competentíssimos advogados, que fizeram exposições brilhantes na defesa do indefensável. Um deles, Dr. Adolfo Ferreiro, admitiu claramen te que o processo era legal. De outro, Dr. Emilio Camacho, em imponente ironia da história, os magistrados da Suprema Corte extraíram em um de seus celebrados livros aqueles ensinamentos necessários e a devida jurisprudência para rechaçar chicana jurídica do já ex-presidente contra o processo legal, constitucional e moral que o defenestrou. C’est la vie, Monsieur Lugo! 
Em Curuguaty, num despejo de terras ocupadas pelos "carperos" (os sem-terra daquí), dezenas de mortes de ambos os lados. Lugo e seu ministro do interior, o belicoso senador Carlos Filizzola, foram avisados de que havia uma emboscada pronta para as forças militares. Com a empáfia que os caracterizou do primeiro ao último dia, e fiel aos amigos que manejam o MST daquí e infernizam a vida de produtores rurais (entre os quais os 350 mil brasileiros que aquí plantam, colhem e vivem, nossos irmãos "brasiguayos"), ambos ordenaram a ação que se tornou uma tragédia na história de nosso país. Poderia citar, também, o EPP (Exército do Povo Paraguaio), guerrilha formada por terroristas intimamente ligados a Lugo em seus tempos na bispado de San Pedro. Jamais as forças de segurança puderam fazer nada contra eles. Mapeados, identific ados, monitorados e soltos: Lugo se manteve fiel aos bandidos pelos quais mostra clara e pública afeição. Como Belaúnde Terry, no Perú, que permitiu com seu "democratismo" o crescimento do terror representado pelo Sendero Luminoso de Abimael Guzmán, Lugo é o pai e a mãe do EPP.

Um hiato na história
Fernando Lugo foi um hiato em nossa história. Necessário, mas sofrido. Seus defeitos superaram suas virtudes. Aqueles eram muitos, essas muito poucas. Nós que nele votamos, sequiosos de um Estadista, nos deparamos com um sibarita. Seu legado é de decepção e fracasso. Não choraram por ele dentro de nossas fronteiras, e os que o defendem foram deles o fazem muito mais pensando no que lhes pode ocorrer do que por solidariedade ao desfrutável governante e desprezível homúnculo que cai.
O fim de seu governo dói mais a um dolorido Chávez do que a nós. A Senhora Kirchner, radical na condenação que nos impõe, se esquece de nossa parceria na importante e gigantesca usina hidrelétrica de Yaciretá, e amplia sua lucrativa viuvez acolhendo em seu seio choroso o decaído amigo. Solidária? Nem tanto, apenas sabendo que se abriu o precedente para que os parlamentos expulsem os incapazes. Na Bolívia o sentimento popular em relação ao sectário e também bolivariano Evo Morales não é diferente do sentimento dos paraguayos por Lugo no outono de sua aventura presidencial. É pior. O relógio da história irá tocar as badaladas do fim de uma aventura mais que improdutiva: raivosa e liberticida.

A posição brasileira
Não compreendemos a posição do Brasil. Ou não queremos compreender, tanto é o bem que lhe queremos. Nos arrasou como sicário da Rainha Vitória e nós lhe perdoamos e juntos construímos o colosso de Itaipu. O tratamos bem e ele defende a continuidade de uma das piores fases de nossa história, em nome do quê? Nega-nos o direito à autodeterminação, mas se esquece do papelão ridículo que fez em defesa de um cretino como Zelaya, um corrupto ligado a grupos somozistas de extermínio e que era tão esquerdista como Stroessner e democrático como Pinochet.
Foi deplorável o papel do chanceler Patriota (que não se perca pelo nome), saracoteando pelas ruas de Assunção em desabalada carreira, indo aos partidos Liberal e Colorado pressionar em favor de um presidente que caia. Adentrando o Parlamento ao lado do chanceler de Hugo Chávez, o Sr. Maduro, para ameaçar em benefício de um presidente que o país rejeitava. Indo ao vice-presidente Federico Franco ameaçar-lhe, com imensa desfaçatez, desconhecendo seu papel constitucional e o fato de que ninguém renunciaria a nada apenas por uma ameaça calhorda da Unasul (que não é nada) e outra ameaça não menos calhorda do Mercosul (que não é nada mais que uma ficção). O Barão do Rio Branco arrancou seus bigodes cofiados no túmulo profanado pelo Itamaraty de hoje. O que quer o governo Dilma? Passar pelo mesmo vexame de Lula na paupé rrima Honduras? Se afirmativo, já fica sabendo que passará. Nós temos imensa disposição de continuar uma parceria que se relevou positiva e decente para ambos os países. Mas não temos da austera presidente o mesmo terror-medo-pânico que lhe devotam seus auxiliares e ministros. Cara feia não faz história, apenas corrói biografias. Dilma chamou seu embaixador em Assunção e Cristina fez o mesmo. As radicais matronas só não sabiam que: o embaixador brasileiro é um ausente total, vivendo mais tempo em Pindorama do que por aqui. Recorda o ex-embaixador Orlando Carbonar, que foi pego de surpresa em fevereiro de 1989 pelo movimento que derrubou o general Stroessner. Até meus filhos, crianças na época, sabiam que o golpe se avizinhava e que estouraria a qualquer momento, menos o embaixador brasileiro, que descansa no carnaval de Curitiba, sua cidade natal. Voltou às pressas, num jatinho da FAB, para embarcar Stroessner rumo ao Brasil. E a Argentina.. . Bem, a Argentina não tem embaixador no Paraguay faz alguns meses... Ocupadíssima, Dona Cristina não nomeou seu substituto. País de necrófilos, chamou um fantasma até a Casa Rosada para consultas.
O Paraguay fez o que tinha que fazer. Seguirá adiante, como seguem adiante as Nações, testadas e curtidas pelas crises que retemperam e reforçam os povos. O religioso que não honrou seus votos de castidade e pobreza e traiu sua igreja, foi por ela rejeitado. O presidente que não honrou nossos votos e nos traiu, foi por nós deposto. Deposto por incapaz, por mentiroso, por ineficiente. Mas, principalmente, por que traiu as esperanças de um país e um povo que precisaram dele e nele confiaram e ele os traiu a todos. E, por isso, Lugo não voltará.

(*) Chiqui Avalos é conhecido escritor e jornalista paraguaio. Combateu a ditadura de Stroessner e apoiou a candidatura de Fernando Lugo. É o editor de "Prensa Confidencial", influente boletim digital editado no Paraguai.


Alberto Afonso Landa Camargo25 de Julho de 2012 
                                                                                                                                         

Antonio Gramsci, na sua obra MAQUIAVEL, A POLÍTICA E O ESTADO MODERNO, aborda também os equívocos que se comete nas análises histórico-políticas ao não encontrar justa relação entre o que é orgânico e o que é ocasional. Faz, também, referências aos desejos e paixões que acabam envolvendo estas discussões, o que cria estas confusões que levam a tratar como causas que atuam imediatamente no processo, outras que, na realidade, atuam mediatamente nele.
Sobre a influência dos desejos e paixões nas tentativas de alguns de impor regras e idéias, volta a referir Gramsci:

"Os próprios desejos e paixões deteriorantes e imediatos constituem a causa do erro na medida em que substituem a análise objetiva e imparcial. E isto se verifica não como 'meio' consciente para estimular à ação, mas como auto-engano. Também neste caso a cobra morde o charlatão: o demagogo é a primeira vítima da sua demagogia."

O pastor e o pensador


Artigo: Reinaldo Azevedo
"O pastor escreveu uma encíclica para exaltar
a ‘oração, o agir, o sofrer e o Juízo (Final)como
lugares da aprendizagem da esperança’. O pensador
nos convida a pesar as conseqüências de um mundo
sem Deus, aquele no qual tudo é permitido"

O papa Bento XVI tornou pública, no dia 30 do mês passado, a segunda encíclica de seu pontificado, Spe salvi, expressão resumida da frase de São Paulo aos romanos Spe salvi facti sumus: é na esperança que fomos salvos. Trata-se, inequivocamente, do texto de um pastor, chefe máximo de uma igreja, mas é também a reflexão de um pensador contemporâneo. O pastor entende os motivos que levam o homem, "expulso do paraíso terrestre", a substituir a "fé em Jesus Cristo" pela "fé no progresso". O pensador considera dois momentos em que essa substituição se fez história – a Revolução Francesa (1789) e o socialismo – e aponta o erro fundamental do teórico comunista alemão Karl Marx (1818-1883): "esqueceu o homem e a sua liberdade". O papa não critica o marxismo como uma ameaça presente, mas como a expressão máxima de um risco permanente.
O pastor escreveu uma encíclica para exaltar a "oração, o agir, o sofrer e o Juízo (Final) como lugares da aprendizagem da esperança". O pensador nos convida a pesar as conseqüências de um mundo sem Deus, aquele no qual tudo é permitido. O pastor – sem dúvida, um bom fundamentalista – vai ao fundamento de sua crença e recupera a importância da "parúsia", que é a segunda vinda do Messias (voltarei a essa palavra). O pensador dialoga com os agnósticos e os ateus e, na prática, os incita a considerar a dimensão religiosa um dado da cultura ao menos – sem deixar de declarar a supremacia da fé, tomada como sinônimo da esperança.
Seja por conta da crítica severa ao marxismo, seja por causa da caracterização dualista que faz do progresso – "em mãos erradas (...), tornou-se um progresso terrível no mal" –, não faltará quem veja nas palavras de Bento XVI a expressão de um insofismável reacionarismo. Será? Segundo o papa, a ditadura do proletariado, imaginada por Marx como uma etapa necessária do comunismo futuro, não deu à luz um mundo sadio, "deixando atrás de si uma destruição desoladora". Alguém se atreve a negar? E Bento XVI vai além: "(Marx) esqueceu que o homem permanece sempre homem. (...) Esqueceu que a liberdade permanece sempre liberdade, inclusive para o mal. Pensava que, uma vez colocada em ordem a economia, tudo se arranjaria. O seu verdadeiro erro é o materialismo: de fato, o homem não é só o produto de condições econômicas nem se pode curá-lo apenas do exterior criando condições econômicas favoráveis".
Alessia Giuliani/AFP
O papa Bento XVI: crítica ao "reino de Deus sem Deus", oferecido pelo materialismo e pela ciência

Entenda-se: Bento XVI não está ressuscitando a Guerra Fria, a disputa pela hegemonia mundial entre o capitalismo e o socialismo. Essa batalha já foi vencida pela civilização do óbvio no século passado, e a economia de mercado triunfou como atributo ou da Criação ou do progresso natural da humanidade – cada um escolha a causa que lhe parecer melhor. O que o papa faz é tomar o marxismo como exemplo máximo de uma visão totalizante do ser, em que a ética se subordina apenas à dimensão material da vida. Certamente não é a única corrente de pensamento a fazê-lo, mas se tornou a mais influente e convincente das visões materialistas. Escreve o papa: "Se ao progresso técnico não corresponde um progresso na formação ética do homem, no crescimento do homem interior, então aquele não é um progresso, mas uma ameaça para o homem e para o mundo".
Bento XVI critica, assim, a visão de mundo segundo a qual o bem-estar humano é mera decorrência das estruturas, "por mais válidas que sejam". Observa que a "liberdade necessita de uma convicção". Afinal, se as condições materiais do indivíduo garantissem, por si mesmas, a sua felicidade, forçoso seria concluir que estaria abolida toda escolha – e, por conseqüência, a liberdade. Os totalitarismos do século passado e suas manifestações remanescentes neste século jamais se assumiram como tais. Em todos eles, sempre há uma retórica meritória que apela à reforma das estruturas em nome do bem comum. Mas com quais valores se pretendeu e se pretende construir esse novo homem? E o papa recorre ao filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) para responder: "Não há dúvida de que um ‘reino de Deus’ realizado sem Deus – e, por conseguinte, um reino somente de homem – resolve-se, inevitavelmente, no ‘fim perverso’ de todas as coisas (...). Já o vimos e vemo-lo sempre de novo".
O "reino de Deus sem Deus" é uma referência também à ciência. Chega a parecer um tanto estranho e talvez vire motivo de pilhéria que o papa, em 2007, aponte um "equívoco" do filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626), passados quase 400 anos de sua morte. E ele o faz. Trata-se de um pretexto para contestar que o homem possa ser salvo apenas pelo conhecimento científico, sem o concurso da fé. Nesse momento da encíclica (parágrafo 25), Bento XVI está se preparando para admoestar também os cristãos.
Não é segredo que a pesquisa, especialmente no campo da genética, se confronta com limites que são de natureza ética, e a religião, o catolicismo em particular, tem sido a porta-voz do que costuma ser caracterizado na imprensa e no debate público como a expressão de um preconceito, de um "medievalismo". Não quero fugir ao propósito deste texto, que é o de apresentar as linhas gerais de um documento de cinqüenta parágrafos e 18.822 palavras, para abrir uma frente particular de debate. Observo apenas que, para Bento XVI, "a ciência pode contribuir muito para a humanização do mundo e dos povos", mas "também pode destruir o homem e o mundo se não for orientada por forças que estão fora dela".
Collection Roger-Viollet/AFP
O teórico comunista Karl Marx: a ditadura do proletariado deixou atrás de si "uma destruição desoladora"

Cumpre perguntar: o que são essas "forças fora da ciência" que devem orientá-la, assim como devem orientar a política e a vida cotidiana? Bento XVI observa que, para um cristão, "o homem é redimido pelo amor", mas este também não basta, porque a mortalidade evidencia a fragilidade dessa resposta. E o papa exalta, então, o outro amor, o "incondicionado". E convida o leitor ao mesmo fervor de São Paulo: "Nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor" (Rom 8,38-39).
Disse que voltaria à palavra "parúsia", a segunda vinda do Messias, e que Bento XVI fazia uma admoestação também aos cristãos. Esses dois fios soltos do texto se enlaçam agora. O papa reitera que a promessa do retorno de Jesus – "de novo há de vir em sua glória para julgar os vivos e os mortos" – é parte "central" do "grande Credo" da Igreja. E, portanto, cabe a quem crê viver a certeza da justiça de Deus. A evolução da iconografia foi tornando o Juízo Final "ameaçador e lúgubre", mas deve ser a grande fonte de esperança de um cristão.
Ocorre que a força salvífica da fé, aponta Bento XVI, tem de ser coletiva. E aqui está a admoestação: "Devemos constatar também que o cristianismo moderno, diante dos sucessos da ciência na progressiva estruturação do mundo, tinha se concentrado em grande parte somente sobre o indivíduo e a sua salvação. Desse modo, restringiu o horizonte da sua esperança e não reconheceu suficientemente sequer a grandeza da sua tarefa".
Finalmente, cumpre indagar, juntamente com os ateus – dos quais o marxismo foi e é a expressão mais influente: num mundo onde as injustiças são tão candentes e onde os inocentes padecem as maiores crueldades, é possível falar de um Bom Deus? Esse Deus tem de ser contestado em nome da moral, não é? E o papa responde: "Se, diante do sofrimento deste mundo, o protesto contra Deus é compreensível, a pretensão de a humanidade poder e dever fazer aquilo que nenhum Deus faz nem é capaz de fazer é presunçosa e intrinsecamente não verdadeira. Não é por acaso que dessa premissa tenham resultado as maiores crueldades e violações da justiça".
Além ou aquém do Mistério, a fé nesse Deus de que nos fala Bento XVI é também uma garantia dos direitos essenciais do homem. O cristianismo, afinal, é um humanismo. É o que diz o pensador. É o que diz o pastor.