Sem humilhação
Ferreira Gullar disse que a crase não foi feita pra humilhar ninguém. Pode ser. Mas que dá nó nos miolos, isso dá. Como desatá-lo? É fácil como andar pra frente.
Primeiro passo: desvendar o segredo do acentinho
Crase é como aliança no dedo esquerdo. Avisa que estamos diante de ilustre senhora casada. A preposição a se encontra com outro a. Pode ser artigo ou pronome demonstrativo. Os dois se olham. O coração estremece. Aí, não dá outra. Juntam os trapinhos e viram um único ser.
Segundo passo: descobrir se existem dois aa
Para que a duplinha tenha vez, impõem-se duas condições. Uma: estar diante de uma palavra feminina. A outra: estar diante de um verbo, adjetivo ou advérbio que peçam a preposição a:
Vou à escola das crianças.O verbo ir pede a preposição a (a gente vai a algum lugar). O substantivo escola adora o artigo (a escola das crianças). Resultado: a + a = à
*João é fiel à namorada.O adjetivo fiel reclama a preposição a (a gente é fiel a alguém). Namorada se usa com artigo (a namorada de João). Resultado: a + a = à
*Relativamente à questão proposta, nada posso informar.O advérbio relativamente exige a preposição a (relativamente a alguém ou a alguma coisa). Questão pede o artigo a (a questão ainda não tem resposta) Resultado: a + a = à
Terceiro passo: recorrer ao macete
Na dúvida, peça ajuda ao tira-teima. Substitua a palavra feminina por uma masculina. (Não precisa ser sinônima.) Se no troca-troca der ao, é crase na certa:
Vou à escola. Vou ao clube.João é fiel à namorada. Carla é fiel ao namorado. Relativamente à questão, nada posso fazer. Relativamente ao problema, nada posso fazer.
Vale a pergunta. Se é tão simples, por que tantos tombam tanto? Acredite. A resposta está no artigo. Nossa dificuldade não reside na preposição, mas no saber se aparece artigo ou não. É o caso de nome de cidades, estados, países ou pessoas, dos pronomes possessivos, de palavras repetidas. E por aí vai. Hoje ficamos com o primeiro caso. A próxima coluna se encarrega dos demais.
O xis da questão
Vou a Brasília? Vou à Brasília? Fui a Paraíba? Fui à Paraíba? Ia a França? Ia à França? Eta dor de cabeça! Cidades, estados e países são cheios de caprichos. Ora dão vez ao grampinho. Ora não. No aperto, a gente chuta. O resultado é um só. A Lei de Murphy, gloriosa, pede passagem. O que pode dar errado dá.
Como safar-se? Há saídas. Uma delas: seguir o conselho dos políticos. "Para vencer o diabo", dizem eles, "convoque todos os demônios." Um demoniozinho se chama troca-troca. Construa a frase com o verbo ir. Depois, substitua o ir pelo indiscreto voltar. Por fim, lembre-se da quadrinha:
Se, ao voltar, volto da, crase no a. Se, ao voltar, volto de, crase pra quê?
Viu? O da – casamento da preposição de com o artigo - denuncia a presença do a. Vamos ao tira-teima:Volto de Brasília.Se, ao voltar, volto de, crase pra quê? Sem artigo, nada de crase:Vou a Brasília.
*Voltei da Paraíba.Se, ao voltar, volto da, crase no a. O artigo dá a vez ao acentinho:Vou à Paraíba.
*Ia a França.Se, ao voltar, volto da, crase no a. Com artigo, vem grampinho:Ia à França.
*Na primeira viagem, vou a Lisboa, a Paris e a Viena. Na segunda, a Londres e a Roma dos papas. Na última, a Madri das touradas e a Brasília de JK.
Eta mistura! Volto de Lisboa, de Paris e de Viena. Volto de Londres e da Roma dos papas. Volto da Madri das touradas e da Brasília de JK.
Na primeira viagem, vou a Lisboa, a Paris e a Viena. Na segunda, a Londres e à Roma dos papas. Na terceira, à Madri das touradas e à Brasília de JK.
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