Entender a alma humana é o desafio do nosso tempo
Gerivaldo Neiva *
Na busca automática, o rádio do carro sintonizou com melhor qualidade uma estação de FM que tocava uma música cantada por Simone, composta por Sueli Costa e Abel Silva, que falava das portas da alma:
Há almas que têmAs dores secretasAs portas abertasSempre pra dorHá almas que têmJuízo e vontadesAlguma bondadeE algum amor
Estava saindo da cidade para mais um a palestra sobre o tema drogas, legalização da maconha... O script estava pronto. Falaria sobre o fracasso da guerra às drogas (ou guerra aos pobres e criminalização da pobreza?), sobre os pequenos traficantes que o sistema de justiça criminal insiste - quando não são mortos por concorrentes ou pela polícia - em condenar a pena de prisão em regime fechado em penitenciárias. Falaria também sobre a necessidade de compreender o usuário e o dependente como figuras absolutamente distintas, sobre o problema do usuário que termina se transformando em problema para sua família, comunidade e saúde pública, sobre a enorme hipocrisia reinante em aceitar como cultural o álcool e tabaco, que causam males terríveis ao usuário e à saúde pública, e criminalizar outras drogas que causariam danos em bem menor ao usuário e à saúde pública etc etc.
Dirigindo, pensando, elaborando o discurso e ouvindo a música (... Há almas que tem as dores secretas...) e buscando argumentos para as perguntas após a palestra: - O Brasil está preparado? Vai aumentar o consumo? E as respostas sendo elaboradas: - O Brasil não está preparado, mas o debate é urgente e precisamos enfrenta-lo sem medos ou preconceitos; não dá para continuar como está; os jovens estão morrendo nesta guerra insana; as experiências internacionais têm demonstrado que a legalização não resultou em aumento no consumo e diminuiu drasticamente os problemas causados pelo enfrentamento às drogas etc etc
E a música tocando, agora em melhor qualidade, (... as portas abertas sempre pra dor...) e a palestra e debate em elaboração: as drogas sempre presentes na história da humanidade, desde os romanos tomando vinho, os andinos mascando folhas de coca, os tupinambás tomando cauim etc. A revolução industrial, a formação das cidades, todos os problemas decorrentes da falta de saneamento básico, a poluição, o trânsito, o stress, a loucura da cidade grande, a solidão na multidão, os amigos virtuais que podem sumir com a tecla “delete”, a depressão, a fuga da realidade, as viagens etc.
Uma pausa para respirar e ouvir a música (... há almas que tem juízo e vontades, alguma bondade e alguma dor...) e continuar pensando sobre a palestra e os argumentos para o debate que se seguirá. Agora, a pergunta clássica: - professor, sendo legalizada, a maconha não pode ser a porta de entrada para outras drogas?
“Há almas que tem as dores secretas, as portas abertas, sempre pra dor...”
Na verdade, nenhuma droga entra na vida da pessoa sem que haja uma porta aberta em sua alma, sem que haja um convite, um aceno da alma para as drogas, sejam classificadas como lícitas ou ilícitas. E por que as almas das pessoas acenam para as drogas? E por que as drogas causam alegria e bem-estar às essas pessoas? E por que outras almas mantêm suas portas sempre fechadas para o mundo? São esses, portanto, os desafios do nosso tempo: entender a alma humana e buscar compreender por que algumas mantém as portas abertas “sempre pra dor” e outras abertas para todas as experiências proporcionadas pela beleza que é a vida!
Ora, as drogas não têm mobilidade, não arrombam portas e estão no lugar que sempre estiveram historicamente: parreiras produzindo uvas para o vinho, canaviais produzindo álcool, papoulas produzindo ópio, a Erythroxylum coca produzindo cocaína, a cannabis sativa produzindo maconha etc. Drogas não caminham em busca das pessoas. As drogas, todas elas, em si mesmo, não encerram maldades e não são criação do “demo”, não representam condutas criminosas. Drogas, na tradução botânica e química, são plantas, preparos, misturas e combinações de moléculas, ou seja, drogas estão na natureza ou resultado da combinação de ingredientes presentes na natureza.
Absolutamente incompreensível, portanto, por que a política internacional rotulou algumas drogas como legais e outras como ilegais, ou seja, resolveu dizer, seguindo orientações da política internacional dos EUA, que algumas drogas são criminosas e outras não são criminosas. Sendo assim, precisamos pensar e entender por que as pessoas procuram as drogas; por que as pessoas se desesperam e buscam as drogas; porque as pessoas furtam, roubam e matam por causa das drogas e, finalmente, por que as pessoas se sentem felizes usando drogas.
Logo, meu caro amigo, ponha tua pergunta de cabeça para baixo e me pergunte assim: - professor, por que algumas almas abrem sua porta de entrada para as drogas e outras não? Assim, também me virando de ponta à cabeça, podemos dialogar sobre esta questão chave: maconha é porta de entrada para outras drogas ou é apenas convidada, por tua alma, para entrar e tomar um café em tua sala de estar?
O problema é que a demonização das drogas e criminalização dos usuários termina fazendo com que as drogas deixem a alegre sala de estar da alma do usuário e começa a ocupar outros espaços. Primeiro o quarto de dormir, a sala de jantar, a cozinha e, finalmente, adentra ao porão onde a alma mantém trancafiados todos os seus demônios. Portanto, proibir e criminalizar as drogas favorecem apenas a libertação dos demônios que irão atordoar o usuário, seus familiares e a comunidade.
O Debate vai continuar intenso. Sei disso. Cheguei ao meu destino. Antes de estacionar, ainda ouvi um pequeno trecho da próxima música:
A minha alma tá armada e apontadaPara cara do sossego!(Sêgo! Sêgo! Sêgo! Sêgo!)Pois paz sem voz, paz sem vozNão é paz, é medo!(Medo! Medo! Medo! Medo!)[...]As grades do condomínioSão para trazer proteçãoMas também trazem a dúvidaSe é você que está nessa prisãoMe abrace e me dê um beijoFaça um filho comigoMas não me deixe sentarNa poltrona no dia de domingo, domingoProcurando novas drogas(Minha Alma – A paz que eu não quero. O Rappa – Marcelo Yuka e Xandão e Marcelo Falcão e Marcelo Lobato e Lauro Farias)
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil)
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