Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
A reação negativa do público já era prevista. O que ninguém esperava era uma sucessão de erros tão grande. A esta altura, você já deve ter visto e, incrédulo, revisto diversas vezes o comercial estrelado por Roberto Carlos e amigos para a Friboi, marca de carnes da alegada terceira maior empresa de alimentos do mundo, a JBS. Nela, o cantor está esperando sua refeição em um restaurante, quando o garçom lhe serve sua massa de sempre.
O pobre homem não sabe que Roberto voltou a comer carne vermelha, desde que seja da Friboi! Todos riem alegremente enquanto o som sobe com o clássico "O Portão", de 1974. A reação foi tão negativa que os comentários no Facebook do cantor passaram a ser monitorados. Qualquer que seja o assunto lançado pelos moderadores, as mensagens de "decepção" e "repúdio" aparecem.
No final do dia de ontem, a Friboi desabilitou a opção de avaliação de seu canal oficial - de tão desastrosamente evidente que o público havia se voltado contra a peça.
E por que tanto repúdio? Abaixo, algumas opções possíveis:
01. Porque usa da intimidade do artista para fazer dinheiro. Esse é o mesmo artista que quatro meses atrás ia à televisão reclamar o direito do artista ao “privado, particular” e mobilizar outros artistas com o objetivo de “evitar a exposição da intimidade”. A campanha do Friboi mostra que, dependendo da altura da montanha de dinheiro, uma questão de foro tão íntimo quanto o que comemos ou deixamos de comer pode, sim, ser negociada.
02. Porque revela o despreparo da equipe de Roberto. Era óbvio para qualquer um acostumado aos tsunamis de opinião da internet que a reação popular seria negativa. Os jornalistas o alertaram, aliás, durante a coletiva em que anunciou o contrato publicitário, semana passada. Se Tony Ramos virou alvo, por que seria diferente com alguém que não é ator e há 30 anos cantava que queria ser civilizado como os animais? A campanha da Friboi mostra o quão altas são as torres erguidas pelo “rei” Roberto e de que tipo de assessores se cercou. Na certa, a estas horas devem estar reunidos dizendo: “Não liga, não Roberto, é tudo inveja!” Em volta de seus suculentos pratos de carne, dificilmente o assunto dos almoços de Roberto Carlos é a música
03. Porque Roberto nem era vegetariano realmente. O vegeterianismo, por definição, exclui do cardápio tudo o que não for de origem vegetal. Alguns adeptos mais radicais abrem mão, inclusive de alimentos derivados de animais, como ovos e laticínio. Pois logo depois de parar de comer carne vermelha no final dos anos 1970, e mesmo depois de parar de comer aves, Roberto continuou comendo peixe normalmente.
04. Porque arranca um clássico do imaginário de seu próprio público. “O Portão” foi a música que puxou seu disco de 1974. Fala de um personagem arrependido que retorna à família que o amou. Erasmo sempre a usa como exemplo do método “cineminha” que criou com o parceiro para compor, relatando as cenas e criando metáforas – é orgulhoso especialmente do verso “meu cachorro me sorriu latindo”. A interpretação da letra é aberta o suficiente para tratar tanto de um “filho pródigo” à moda da Bíblia, como de um homem (ou mulher) que conseguiu valorizar o casamento do qual havia pensado em desistir. Assim, entrou na vida de milhões de pessoas, de seus filhos e de seus netos. E agora o próprio cantor vem e a usa para vender bife, rebaixando as memórias de seu público à altura de um negócio qualquer.
05. Porque o comercial é constrangedor. Com aquela mesma luz azul-espiritismo que envelopa tudo o que leva seu nome, Roberto está em um restaurante acompanhando dois casais: seu filho Dudu e a esposa, e seu empresário Dody Sirena e a esposa. Considerei escrever que alguém pensou que essa mistura de almoço de negócios com almoço em família daria alguma legitimidade à campanha, mas, sinceramente, não consigo imaginar o que quiseram transmitir com a escolha do elenco.
06. Porque o dinheiro do cachê deveria ir ao garçom, não ao cantor. É constrangedor o tempo que Roberto demora para emitir o nome da empresa que lhe está pagando milhões para fazê-lo. Quem anuncia o fabricante da carne, na verdade, é o garçom. E, como bem notou Rafinha Bastos, quando finalmente o faz, fica ainda mais constrangedor: “É Friboi, claro!”. Como assim, “claro”? Será que Roberto reconhece o fabricante apenas de olhar para um bife?
07. Porque “O Portão” já vendeu cigarro. Agora, todos os milhões e milhões de fãs de Roberto Carlos estão discutindo os malefícios da carne vermelha e a crueldade no abate de animais. Para ajudar no debate, Marili Roberto lembrou sabiamente que “O Portão”, a música escolhida para ilustrar a “volta” de Roberto ao reconfortante mundo da carne vermelha, já foi usada para vender cigarros Continental em 1976, dois anos depois de ser lançada.
08. Porque Roberto Carlos não publica um álbum inédito há onze anos. O comercial nos joga na cara o que, educadamente, o historiador Paulo Cesar Araújo vem repetindo em suas entrevistas: o mundo de Roberto deixou há muito de respirar música. Agora, seu tempo é gasto com cruzeiros, processos contra escritores, ECAD, Procure Saber”, empreendimentos imobiliários e anúncios de carne. Fica ainda mais doloroso se lembrarmos que enquanto o mercado de discos do Brasil ia de vento em popa, ele lançava excessivos e desleixados um álbum por ano. Será que, até 2003, seu interesse maior era artístico ou mercadológico? É uma dúvida legítima que a campanha da Friboi nos dá o direito de levantar.
09. Porque não apenas ele não publica um álbum de inéditas há onze anos, mas ele tenta nos convencer a comprar gravações antigas de novo. Sabe qual o último lançamento de Roberto? Um single virtual de “Cartas de amor”, música que ele já havia lançado em 1984, que já era um sucesso de Aguinaldo Timóteo de 1967 que já era uma versão de “Love Letters”, música de 1945. A música, da trilha da novela Em Família, deveria ser uma gravação recente, mas, sem tempo para a música, Roberto preferiu usar o fonograma de 1984. Antes de “Cartas de amor”, Roberto havia tentado nos convencer a comprar um disco de remixes de seus sucessos antigos, de olho no mercado natalino de 2013.
10. Porque o dinheiro, como sempre é para ele mesmo. Dispensa dizer que Roberto Carlos não precisa do dinheiro que embolsou com a campanha da Friboi. Bob Dylan também não precisava do dinheiro que embolsou na recente (e também polêmica) campanha da Chrysler que estrelou. Mas Dylan já cansou de usar sua imagem para defender direitos civis e para apoiar eventos beneficentes – além de cantar os ventos da contracultura por cinco décadas. Você se lembra da última vez que viu Roberto usando da sua imagem e de seu tremendo poder de influência para alguma causa que auxilie os menos favorecidos? Fica a dica (gratuita) para a equipe do "rei". Se é que alguém ali está enxergando o desastre em que se meteram.
Ricardo Alexandre é jornalista e escritor.
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