A pessoa que ocupa uma posição no topo de uma organização precisa ter emitido uma ordem para que seja condenada pelo crime. O esclarecimento sobre a comentada teoria do domínio do fato foi feito pelo seu principal estudioso, Claus Roxin, em entrevista ao jornal Tribunal do Advogado, da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro.
O professor alemão, de 81 anos, esteve no Brasil na semana passada, momento em
que os debates sobre a teoria à qual se dedicou por tanto tempo atingiram o seu auge
no Brasil, ao ser aplicada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do mensalão.
“O 'ter de saber' não é suficiente para o dolo, que é o conhecimento real e não um
conhecimento que meramente deveria existir. Essa construção de um suposto
conhecimento vem do Direito anglo-saxônico. Não a considero correta”, ensina o
professor emérito da Faculdade de Munique.
Conhecendo a posição do criador da teoria, a defesa do ex-ministro José Dirceu vai
pedir a ele um parecer jurídico sobre o caso, segundo noticiou o jornal Folha de São
Paulo.
Em entrevista ao jornal, o alemão disse que a teoria tem sido utilizada de forma errada
no Brasil.
Leia a entrevista concedida ao jornal Tribuna do Advogado:
A teoria do domínio do fato foi citada recentemente no julgamento da Ação
Penal 470. Poderia discorrer sobre seu histórico, fazendo uma breve
apresentação?
Claus Roxin — A teoria do domínio do fato não foi criada por mim, mas fui eu quem a
Claus Roxin — A teoria do domínio do fato não foi criada por mim, mas fui eu quem a
desenvolveu em todos os seus detalhes na década de 1960, em um livro com cerca
de 700 páginas. Minha motivação foram os crimes cometidos à época do nacional-
socialismo.
A jurisprudência alemã costumava condenar como partícipes os que haviam cometido
delitos pelas próprias mãos — por exemplo, o disparo contra judeus —, enquanto
sempre achei que, ao praticar um delito diretamente, o indivíduo deveria ser
responsabilizado como autor. E quem ocupa uma posição dentro de um aparato
organizado de poder e dá o comando para que se execute a ação criminosa também
deve responder como autor, e não como mero partícipe, como rezava a doutrina da
época.
De início, a jurisprudência alemã ignorou a teoria, que, no entanto, foi cada vez mais
aceita pela literatura jurídica. Ao longo do tempo, grandes êxitos foram obtidos,
sobretudo na América do Sul, onde a teoria foi aplicada com sucesso no processo
contra a junta militar argentina do governo Rafael Videla, considerando seus
integrantesautores, assim como na responsabilização do ex-presidente peruano Alberto
Fujimori por diversos crimes cometidos durante seu governo.
Posteriormente, o Bundesgerichtshof [equivalente alemão de nosso Superior Tribunal
de Justiça, o STJ] também adotou a teoria para julgar os casos de crimes na Alemanha
Oriental, especialmente as ordens para disparar contra aqueles que tentassem fugir
para a Alemanha Ocidental atravessando a fronteira entre os dois países. A teoria
também foi adotada pelo Tribunal Penal Internacional e consta em seu estatuto.
Seria possível utilizar a teoria do domínio do fato para fundamentar a
condenação de um acusado, presumindo-se a sua participação no crime
a partir do entendimento de que ele dominaria o fato típico por ocupar
determinada posição hierárquica?
Claus Roxin — Não, de forma nenhuma. A pessoa que ocupa uma posição no topo
Claus Roxin — Não, de forma nenhuma. A pessoa que ocupa uma posição no topo
de uma organização qualquer tem que ter dirigido esses fatos e comandado os
acontecimentos, ter emitido uma ordem. Ocupar posição de destaque não fundamenta
o domínio do fato. O 'ter de saber' não é suficiente para o dolo, que é o conhecimento
real e não um conhecimento que meramente deveria existir. Essa construção de um
suposto conhecimento vem do direito anglo-saxônico. Não a considero correta.
No caso de Fujimori, por exemplo, ele controlou os sequestros e homicídios que foram
realizados. Ele deu as ordens. A Corte Suprema do Peru exigiu as provas desses fatos
para condená-lo. No caso dos atiradores do muro, na Alemanha Oriental, os acusados
foram os membros do Conselho Nacional de Segurança, já que foram eles que deram
a ordem para que se atirasse em quem estivesse a ponto de cruzar a fronteira e fugir
para a Alemanha Ocidental.
É possível a adoção da teoria dos aparelhos organizados de poder para
fundamentar a condenação por crimes supostamente praticados por
dirigentes governamentais em uma democracia?
Claus Roxin — Em princípio, não. A não ser que se trate de uma democracia de
Claus Roxin — Em princípio, não. A não ser que se trate de uma democracia de
fachada, onde é possível imaginar alguém que domine os fatos específicos praticados
dentro deste aparato de poder. Numa democracia real, a teoria não é aplicável à
criminalidade de agentes do Estado. O critério com que trabalho é a dissociação do
Direito (Rechtsgelöstheit). A característica de todos os aparatos organizados de
poder é que estejam fora da ordem jurídica.
Em uma democracia, quando é dado o comando de que se pratique algo ilícito, as
pessoas têm o conhecimento de que poderão responder por isso. Somente em um
regime autoritário pode-se atuar com a certeza de que nada vai acontecer, com a
garantia da ditadura.
Revista Consultor Jurídico, 15 de novembro de 2012
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