Para muitos brasileiros o ano de 2014 está começando agora, com duas notícias: a seleção brasileira perdeu de 10 a 1 (em dois jogos); mas mesmo assim o Brasil ganhou a Copa (fora do gramado). Faltando um mês para o evento, o “presidente do TCU disse que o país iria passar vergonha na Copa; as cidades não estão preparadas para receber os cidadãos” (O Globo 16/5/14: 6). A “Der Spiegel” (revista alemã) trouxe em sua capa a imagem de uma bola oficial caindo em chamas sobre o RJ, sob o título “Morte e jogos”; a “The Economist” mostrou que o improviso é a marca registrada do Brasil; o “El País” e o “The New York Times” sublinhavam a insatisfação generalizada do povo com a Copa do Mundo; a Folha (14/5/14: A2) registrou que apenas 41% das intervenções prometidas estavam concluídas (“perde-se a oportunidade de o país do futebol mostrar-se confiável”). Concluído o torneio, Simon Kuper (colunista do “Financial Times”) escreveu: “A boa imagem conquistada pelo Brasil neste mês não vai se traduzir em mais turismo ou investimentos estrangeiros no futuro. Fora de campo, o Brasil viveu uma boa Copa. Essa é uma recompensa por si só. Desfrutem dela” (Folha 13/7/14: A9). Shobhan Saxena (jornalista indiano) enfatizou que “Todos têm elogios a fazer à “Copa das Copas”. Os estádios são excelentes, com ambiente perfeito. Os voos foram pontuais e as filas nos aeroportos, curtas e rápidas. Os hotéis foram calorosos e eficientes. E mesmo os muito criticados motoristas de táxi têm sido prestativos e simpáticos; o maior ponto positivo do Brasil é o seu povo; quem veio temendo ser assaltado, vai voltar com recordações de cantorias, danças e festas nas ruas”. Tudo isso já tinha sido antecipado pelo ministro do Esporte (Aldo Rebelo): “Se você comparecer a um galpão de escola de samba, você aposta que não vai ter desfile nenhum, mas, no dia, a escola está lá, bonita, pontual, organizada”. O Brasil é realmente bastante complicado. Tom Jobim foi ao ponto: “Não é um país para principiantes”.
Aprofundamento do tema:
O Brasil é um país de muitos talentos nos esportes, mas de pouca organização, disciplina e planejamento. Sérgio Buarque de Holanda ofereceu uma explicação para ele e os brasileiros por intermédio de um método narrativo particular, composto de pares (trabalho e aventura, método e capricho, rural e urbano, democracia e caudilhismo, norma impessoal e impulso afetivo). Seus pares talvez possam ser sintetizados na dualidade do carnaval e da tragédia (Empoli). Encaramos o futebol como um carnaval (muita desorganização, muito improviso, mas com bom espetáculo). Precisamente por isso não deveríamos estranhar as tragédias previsíveis.
É do nosso personalismo (de origem ibérica), diz o autor citado, que advêm a frouxidão das instituições [cada ministro do STF, por exemplo, é uma Suprema Corte em miniatura], a falta de coesão social [cada um para si e Deus, quando tiver tempo, para todos] assim como nossa indisciplina para o trabalho ou atividade coletiva (dificuldade para atuar em equipe). Traços da nossa personalidade anunciados como atuais já estavam impregnados na alma ibérica há mais de mil anos. Temos problemas com o princípio da hierarquia (ressalvando-se a área militar, por exemplo) assim como com a exacerbação acentuadíssima do prestígio pessoal, que sugere o desfrute de privilégios deploráveis, típicos da aristocracia. Somos, como se vê, personalistas e “aristocratas”. Também seria da genética dos que mandam a repulsa pelo trabalho regular [Hernán Cortez teria dito, ao chegar no México, que não estava ali para trabalhar, sim, para ficar rico] assim como a vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens (aqui as ditaduras nascem com facilidade enorme).
Definitivamente, não é fácil entender o Brasil. Curtindo ainda a ressaca da derrota, vale a pena refletir sobre algumas clássicas frases que podem nos ajudar a entendê-lo:
“O Brasil é de cabeça para baixo e, se você disser que é de cabeça para baixo, eles o põem [o mapa] de cabeça para baixo para você dizer que está de cabeça para cima” (Tom Jobim).
É aqui que “as prostitutas gozam e os traficantes cheiram” (Jobin). Nessa mesma linha, o “filósofo” Tim Maia dizia que no nosso país “prostituta se apaixona pelo amante, cafetão tem ciúme de prostituta, traficante se vicia e pobre é de direita”.
Não costumamos ver em outros lugares vinagre virar bomba, o leite se transformar em formol, o carro virar arma, a polícia ser um perigo, favela ser ponto turístico; aqui rico é chamado de doutor, professor é mala, celular é paixão e assaltante morre de enfarto na hora do seu “trabalho”.
É provável que não veremos em nenhum outro país homofóbico cuidar da comissão dos direitos humanos, desmatador zelar pelo meio ambiente, senhor de engenho legislar sobre trabalho escravo, condenados vigiarem a Justiça e acusados de suborno integrarem as comissões de finanças do Congresso.
É aqui que preso de confiança toma conta da delegacia, que Câmara e Senado nos iludem com suas CPIS e comissões de “Ética”, que fechamos escolas para construir presídios e onde os réus são colaboradores da Justiça.
Virgem é dona de cabaré, policial vende cocaína para traficante e músico bota fogo em boate; não é em outro lugar que o aluno passa na prova de ética colando, professor de ética faz apologia da traição e ainda se confunde ética com estética; os políticos perpétuos falam na necessidade de periodicidade dos mandatos e a honestidade gera vergonha (Rui Barbosa).
Muita gente anda escolhendo o caminho do crime, disse Al Capone, “quando há tantas maneiras legais de ser desonesto”. Quem se vende vale mais e os imorais dão lição de moralidade (K. Marx). Tudo que é rigorosamente proibido resulta ligeiramente permitido (Roberto Campos).
A Justiça é cega, mas em compensação escuta todo mundo (alopradamente); o país é grande, mas faltam espaços para os pequenos (na saúde, na Justiça, nas escolas etc.). Um lugarzinho, para eles, sempre existe, no entanto, nas prisões abarrotadas.
Também no Brasil é possível “riqueza sem trabalho, prazer sem escrúpulos, conhecimento sem sabedoria, comércio sem moral, política sem ideal, religião sem sacrifício e ciência sem humanidade” (Gandhi). A concorrência pública é o lugar onde menos se concorre (porque tudo é combinado antes). Todo cidadão é culpado, até que prove ser influente. O crime organizado comanda os presídios e muitos políticos aprovam leis dizendo “não roubem” (por medo da concorrência).
Só encontramos políticos honestos quando os comprados se rebelam contra o exemplo de Roberto Jefferson e permanecem calados para sempre (fidedignos ao suborno). De qualquer modo, é certo que para alguns governantes não podemos nunca dar as chaves dos cofres. No Brasil, como se vê, tudo pode acontecer… até mesmo perder uma Copa em casa de forma humilhante.